Título: Chávez sob o olhar da periferia
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 12/03/2013, Mundo, p. 18

Alheia à presença de homens armados da milícia Tupac Amaru, o grupo que controla a Favela 23 de Enero, María Sánchez, 90 anos, destoa do sentimento dos outros moradores da comunidade, o principal reduto chavista, na região oeste de Caracas. Demonstra tristeza com o fato de o corpo do presidente Hugo Chávez não ser enterrado. “Ele já está há muitos dias morto. É preciso tornar a alma dele tranquila”, lamenta. Sua maior preocupação é com a mãe de Chávez, dona Elena. “Eu perdi uma filha e sinto a dor que ela está experimentando”, afirma, referindo-se também ao líder bolivariano. “Estou muito triste pela morte desse homem. Só Deus sabe.”

A cerca de 200m da casa de María, soldados venezuelanos montaram uma barreira. Ao fundo da estreita rua, é possível avistar parte do Quartel de La Montaña, onde os restos mortais do presidente Hugo Chávez deverão ficar por alguns dias a partir de sexta-feira. Ali, o corpo de Chávez permanecerá exposto provisoriamente, dentro do Museu da Revolução Bolivariana, até ser levado ao Mausoléu para o Libertador Simón Bolívar.

O acesso ao quartel é proibido. Os milicianos não se constrangem com a presença de militares e ameaçam a reportagem. Exigem que a câmera seja desligada. Bernarda Amanda, 73 anos, mora em uma casa vizinha às instalações militares, onde garante ter sido criada. Ela sorri quando questionada sobre como vê a exibição do corpo de Chávez no local. “Somos demasiadamente felizes. Vimos esse presidente baixar por aqui, subir por ali, brincar com as crianças. Tenho muito a agradecer a ele”, disse à reportagem. Com os dedos, aponta o número dois e responde quantas vezes já falou com Chávez.

“Minha velha” Em uma dessas ocasiões, um representante do PSUV subiu a favela e disse que o presidente queria falar com “minha velha”. Bernarda conta que assim Chávez a chamava. “Nós nos falamos. Ele cantou para mim uma canção belíssima”, relatou. Os olhos dela se enchem de lágrimas ao recordar daquele 30 de maio de 2010. “Chávez chegou à porta de minha casa e me abraçou. Levou minha filha, grávida, para dar à luz no hospital. Era um homem nobre”, comenta. “Chávez era uma pessoa do povo. Deus o mandou. Ele morreu na carne, mas o espírito do presidente Chávez está aqui”, acrescenta, antes de confidenciar à reportagem que o barulho de obras dentro do quartel lhe tem tirado o sono por várias noites. Talvez seja um indício dos preparativos para acomodar a urna de cristal com o corpo embalsamado do líder bolivariano.

“Ele foi meu comandante, e o guardo aqui, no coração. Bem... Ele se foi... O que podemos fazer?”, lamenta a amiga Mary Chirino, 71 anos. Ela pretende superar a dor nas pernas e caminhar até o quartel para ver o corpo. “Chávez me ajudou com minha pensão, que é a única coisa que tenho. E estou esperando uma casa que ele me deu”, comenta. O técnico em sistemas Domingo Valdéz, 35 anos, passeava com o filho de 1 ano no playground construído a mando de Chávez. “Ter o nosso comandante tão perto é o melhor para a nação. Esperaremos os trâmites até que possamos levá-lo ao Panteão Nacional, onde merece estar o comandante”, opina. “Estamos orgulhosos. Aqui era a área do presidente, por onde ele transitava livremente. Meu comandante era todo motivação e alegria. Apesar de toda a tristeza e dor que sentimos, a alegria continua. Nosso comandante renasceu, pois viverá em nosso coração para sempre.”

Noraima Toledo Gutiérrez, 41 anos, conta ter ficado impactada quando soube que o corpo de Chávez ficaria por um tempo na comunidade. “Como um ser humano, o normal era que ele fosse baixado à sepultura. Mas Chávez faleceu fisicamente, no plano mental ele sempre estará aqui”, diz a advogada, sem esconder a emoção. Ela considera Chávez um excelente pedagogo, além de líder mundial. “Ele nos ensinou muito. A oposição fala mal dele, mas nem vale a pena ser nomeada. Ele foi um excelente presidente.”

Refúgio na favela

Depois de comandar o golpe de Estado fracassado contra o presidente Carlos Andrés Pérez, em 4 de fevereiro de 1992, Hugo Chávez se refugiou no Quartel de la Montaña. Até ser preso por emissários de Pérez, que ordenaram sua rendição. Chávez nutria um sentimento especial pela comunidade. Das janelas do Palácio de Miraflores, ele tinha uma visão privilegiada dos casebres e do Quartel de la Montaña — o qual chegou a pintar em uma tela, em junho de 2011, após receber o diagnóstico de câncer.

Os donos do terreno

A bandeira preta e vermelha colocada na porta das casas carrega uma mensagem. Ali, mora um miliciano do grupo armado Tupac Amaru. A facção controla o tráfico de drogas na favela 23 de Enero e executa outros traficantes que se atrevem a minar a influência da organização na comunidade. O presidente Hugo Chávez teria ordenado às forças do Estado que não investissem contra os tupac amaru e os deixassem em paz.