O globo, n. 31842, 11/10/2020. Economia, p. 29

 

Gratificações criam supersalários que superam teto

Manoel Ventura

Gabriel Shinohara

11/10/2020

 

 

Constituição diz que nenhum servidor público pode ganhar mais que R$ 39,2 mil, mas limite ainda é ultrapassado por benefícios fora da conta. Governo quer mudar isso para financiar Renda Cidadã, mas valor da economia é incerto

 O teto que estabelece o máximo que um servidor público pode ganhar no Brasil voltou a ser assunto na semana passada por conta das discussões no governo e no Congresso sobre onde cortar despesas para financiar o novo programa social que o governo quer criar, chamado agora de Renda Cidadã. Apesar de expressamente previsto na Constituição, o teto é furado por benefícios, auxílios e indenizações fora da conta e continuam onerando os cofres públicos com supersalários. A Carta prevê que nenhuma remuneração de servidor público ultrapasse o salário bruto de um ministro do Supremo Tribunal Federal, que é hoje R$ 39.293,32.

Na prática, há servidores dos três Poderes nas esferas federal, estadual e municipal beneficiados por artifícios que driblam a regra. Muitos contracheques são acrescidos de valores chamados de “indenizações”, “vantagens” ou “gratificações”, tudo com respaldo legal dado por decisões judiciais ou resoluções, apesar da desobediência à previsão constitucional. As regras aplicadas hoje pelos órgãos públicos estabelecem que não estão sujeitas ao teto constitucional parcelas de benefícios como ajuda de custo; auxílio-alimentação; auxílio moradia; diárias de viagem; auxílio-funeral; auxílio-transporte; indenização de transporte; licença-prêmio convertida em pecúnia; auxílio préescolar; benefícios de plano de assistência médico-social; devolução de valores tributários e/ou contribuições previdenciárias indevidamente recolhidas; e “outras parcelas indenizatórias previstas em lei”.

ESTIMATIVAS IMPRECISAS

Outras maneiras de furar o teto são venda de férias, recorrente no Judiciário, e uso de jetons, gratificações pagas por participação em conselhos de empresas públicas, comuns entre ocupantes de cargos de confiança no Executivo.

— O problema é que todo mundo quer ganhar mais. E qual tem sido sistematicamente uma ferramenta para superar o teto e ganhar mais no serviço público? Várias parcelas que são entregues a títulos de indenização, porque são pagas fora do teto. Só que muitas vezes elas têm natureza salarial, pagas como natureza indenizatória, o que não deveria ser — diz Maurício Zockun, professor de Direito Administrativo da PUC-SP, para quem a reforma administrativa deveria abordares se tema, incluindo os atuais servidores.

Na semana passada, integrantes da equipe econômica disseram ao GLOBO que a regulamentação das parcelas recebidas “extrateto” poderia render de R $10 bilhões a R$ 15 bilhões ao fazer o limite valer de verdade. Ma sabas edes secál cu loéman tida em sigilo. Como os penduricalhos variam muito, faltam dados capazes de dimensionar com precisão o problema. Mesmo especialistas no assunto divergem da estimativa do governo. O economista Daniel Duque, do Centro de Liderança Pública (CLP), por exemplo, estima que R$ 2,6 bilhões saem dos cofres públicos para pagamentos remuneratórios acima do teto por ano. O levantamento, baseado em dados da pesquisa Pnad Contínua, do IBGE, aponta que mais da metade (54%) dos servidores que ganham acima do teto estão na esfera estadual. Os federais são 40,2% e os municipais, 5,8%.

— Se você olhar a trajetória de salário médio, o Judiciário estadual é o que mais cresceu nos últimos anos. É a área do setor público que mais tem apresentado distorções e aumento dos supersalários na última década —disse Duque.

 PROJETO DE LEI PARADO

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) diz que a Corregedoria Nacional de Justiça é responsável por acompanhar, apurar e determinar a suspensão de casos irregulares de pagamento a magistrados e servidores do Judiciário, mas não informou quantas são as remunerações acima do teto. Apenas no Poder Executivo federal, 1.285 servidores recebem regularmente acima do teto, segundo o Ministério da Economia. A pasta diz que esses funcionários são “beneficiados por ações judiciais”. O Senado informa não haver pagamentos além do teto, só que não considera os auxílios na conta. Já a Câmara dos Deputados diz que “aplica integralmente o corte nos salários brutos dos servidores que excedem o limite constitucional” e, por isso , nenhum recebe remuneração acima do teto.

O Conselho do Ministério Público sugere consulta aos portais da Transparência. Apesar de o teto salarial ser uma das alternativas na mesa de Paulo Guedes para encontrar uma saída para o Renda Cidadã, o próprio ministro da Economia já disse que o limite remuneratório de R$ 39,2 mil é baixo e dificulta a retenção de bons profissionais no serviço público. No país, a renda média do trabalho medida pelo IBGEéR $2.535. Guedes defendeu rever as regras para aumentar os níveis de progressão do funcionalismo, mas não incluiu proposta sobre o teto no projeto de reforma administrativa enviado ao Congresso em setembro — nem para aumentá-lo nem para forçar seu cumprimento.

No Congresso, algumas iniciativas tentam limitar os super salários, como afrente parlamentar da reforma administrativa. Já aprovado no Senado, um projeto de lei paradona Câmara determina computar gratificações como honorários para advogados da União e jetons dentro do teto. Outras verbas como o 13º salário, adicional de férias e auxílio-alimentação ficariam de fora. Outra proposta, do deputado Pedro Cunha Lima (PSDBPB), veda acréscimos no salário de funcionários públicos com remuneração acima de R$ 9,8 mil, um quarto do teto. Assim, benefícios como o auxílio-moradia deixariam de ser pagos a esses servidores.

—A gente está falando dos 2% mais ricos do Brasil. O poder público existe para servir sobretudo a quem menos tem, a razão de ser para o Estado é fazer correções em termos de justiça social —diz Lima.