O globo, n. 31843, 12/10/2020. Rio, p. 9

 

A saga dos manguezais

Gustavo Goulart

Lucas Altino

12/10/2020

 

 

Especialistas temem ameaças a ecossistema costeiro fluminense

 Com árvores que se debruçam sobre o espelho d’ água e força para suportar ondas e inundações violentas, os manguezais fazem parte da paisagem do Rio, estado que concentra a maior parte deste ecossistema na Região Sudeste. Na última década, a criação de unidades de conservação foi fundamental para manter íntegras as regiões cobertas por essa vegetação. Mas a resolução federal que flexibiliza permissões de uso de solo em áreas de mangue já preocupa especialistas, que temem retrocessos e que as ameaças voltem a pairar sobre esses recantos cheios de vida e beleza na costa fluminense.

Segundo o Atlas dos Manguezais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), elaborado em 2018, o Brasil possui 1,3 milhão de hectares de mangue. O Rio fica com 13,7 mil hectares, ou aproximadamente 138 quilômetros quadrados. A Baía de Guanabara concentra a maior parte dessa vegetação: 74 quilômetros quadrados, metade do total. Mas, por todo o estado, há trechos importantes. Na Baía de Sepetiba, são 29 quilômetros; na Baía da Ilha Grande, oito; e no Complexo do Paraíba do Sul, seis. O monitoramento por satélite mostra que recentemente não houve perda expressiva de manguezais. Mas o equilíbrio é delicado.

“O Rio apresentou, nos últimos 20 anos, até aumento de mangue, muito por causa das medidas protetivas”

MARILIA LIGNON
Engenheira de Pesca da Universidade Estadual Paulista

 — Apesar de todo impacto de marinas, portos e construções irregulares, o Rio apresentou, nos últimos 20 anos, até aumento de mangue, muito por causa das medidas protetivas. Mas a flexibilização decidida pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) vai acarretar fragilidade em um ecossistema fundamental para o armazenamento de carbono, a produção de alimentos e a proteção da zona costeira — afirma a professora de Engenharia de Pesca Marilia Lignon, da Universidade Estadual Paulista, e membro do grupo de especialistas em manguezais da International Union for Conservation of Nature (IUCN).

Ameaças localizadas

No fim de setembro, uma reunião do Conama com apenas 23 membros — quando o quórum tradicional é de 96 conselheiros —, que foi presidida pelo ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, definiu pela revogação de quatro resoluções de medidas protetivas, especialmente em manguezais e restingas. No dia seguinte, a Justiça Federal suspendeu o resultado da reunião com uma liminar. Mas, em seguida, o desembargador federal Marcelo Pereira da Silva, do TRF-2, acatou recurso da União e derrubou a liminar.

Uma das justificativas de Ricardo Salles é que a Lei Federal, por meio do Código Florestal, já determina a proteção de mangues e restingas e, por isso, as resoluções, que foram suprimidas, seriam uma “redundância jurídica”. No Rio, a Constituição Estadual prevê a mesma proteção. Porém, além do movimento político para flexibilizar normas, a ausência de regras específicas — como a que definia uma extensão de 300 metros quadrados a partir do preamar (marco da maré-alta nas praias) como área de proteção da restinga — poderia facilitar ocupações e causar danos ambientais.

— Atualmente observamos perdas localizadas nesses ecossistemas. E o ganho com unidades de conservação mostra a importância da efetiva proteção dos manguezais. A Baía de Guanabara ilustra muito bem, os mangues dentro das áreas protegidas estão muito mais saudáveis do que o resto — explica Mário Soares, coordenador do Núcleo de Estudos em Manguezais da Uerj, que cita ameaças nas baías de Guanabara e de Sepetiba, nas Lagoas de Jacarepaguá, em Angra e em Paraty.

Um levantamento realizado pela ONG SOS Mata Atlântica, a pedido do GLOBO, mostra que o último período com perda de manguezais no Rio foi entre 2010 e 2011: seis hectares. Já a área de restinga teve redução de 59 hectares entre 2015 e 2017. Outro mapeamento, da ONG MapBiomas, revela não só uma estabilidade nas áreas de manguezais na última década, mas até um aumento delas em relação às décadas de 1980 e 1990, quando várias unidades de conservação foram criadas. Até meados dos anos 90, a área de mangue no Rio era menor que 8 mil hectares.

Um dos principais exemplos de sucesso de recuperação de mangue é a Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, na Baía de Guanabara. Criada em 1984, a unidade hoje apresenta área maior de mangue do que na época de sua criação. Justamente porque, entre as principais ameaças aos manguezais, estão a expansão urbana e especulação imobiliária, fora a poluição por esgoto, lixões e petrolíferas.

“É um ecossistema que filtra a poluição e atua como berçário”

WILSON RODRIGUES FAKIR
Presidente da colônia de pescadores Z-10, no entorno da Baía de Guanabara

Uma das áreas de restingas e manguezais mais importante do país, na Costa Verde, é alvo da especulação imobiliária há décadas. Por isso, ambientalistas, como Ivan Marcelo, membro do Instituto Socioambiental da Baía de Ilha Grande, fazem um apelo para que medidas protetivas não sejam relaxadas.

— A degradação é visível. Há lançamento de esgoto, aterro e supressão da vegetação, tudo agravado pelo adensamento urbano — avalia ele, apontando o manguezal da Japuíba, em Angra, como um dos mais ameaçados.

Falta de controle

A deficiência da fiscalização é outro fantasma. O engenheiro Ricardo Nunes Oliveira, ex-servidor da Superintendência do Patrimônio da União, teve, por anos, essa atribuição e admite que nunca foi à Baía de Guanabara. De acordo com ele, falta treinamento e estrutura:

— Não adianta ter leis superprotetoras e não dispor de mecanismos efetivos de gestão, monitoramento e controle dessas áreas. Por décadas fui fiscal da União e nunca estive na Baía de Guanabara. Além do número de funcionários ser restrito, nunca existiu interesse do governo em fiscalizar.

O biólogo Mario Moscatelli diz que o momento é de resistência.

—Só existe Baía de Ilha Grande, por exemplo, se você tiver o ecossistema que a mantém — alerta.

A proteção dos manguezais também significa a sobrevivência da atividade pesqueira. Na Colônia Z-10, a maior do Rio, que abrange Ilha do Governador, Paquetá e Caxias, os cerca de dois mil moradores lamentam a redução da presença de peixes nas águas. Presidente da colônia, Wilson Rodrigues “Fakir”, de 58 anos, diz que um monitoramento iniciado há quatro anos mostra a queda do pescado, ano a ano:

— A situação já era ruim. Com as medidas do governo tende a piorar. O manguezal está morrendo por falta de oxigenação. É um ecossistema que filtra a poluição e atua como um berçário. A tainha e o robalo, dois dos peixes que mais pescamos, fazem a desova no mangue.

Procurado, o Inea respondeu que segue “estritamente” o artigo 268 da Constituição Estadual, que protege os manguezais, e prometeu, por meio do projeto Florestas do Amanhã, o reflorestamento de 60 hectares de área de mangue, em Guapimirim, ainda neste ano. Em 2019, foram realizadas, mediante compensação ambiental, a recuperação de 45,75 hectares de área de mangue, segundo a pasta.