O globo, n. 31845, 14/10/2020. Mundo, p. 29

 

Contra a invasão vermelha

Vinicius Sasine

14/10/2020

 

 

Brasil fez operação militar inédita na Amazônia 

 O Exército brasileiro gastou R $ 6 milhões apenas com combustível, horas de vôo e transporte para simular uma guerra entre dois países na Amazônia, em uma operação militar inédita, que ainda não havia sido feita no país. Os militares decidiram criar um campo de guerra em que um suposto país "vermelho" invadisse um país "azul", sendo necessário expulsar os invasores.

A simulação ocorreu em um momento de animosidade com a vizinha Venezuela, quase ao mesmo tempo em que o governo brasileiro decidiu retirar as credenciais dadas a diplomatas do regime de Nicolás Maduro que trabalham no Brasil. A operação envolveu 3,6 mil militares e concentrou-se nas cidades de Manacapuru, Moura e Novo Airão, na Amazônia, num raio de 100 a 300 quilômetros de Manaus.

A ”guerra” na região amazônica ocorreu entre 8 e 22 de setembro. No dia 18 daquele mês, o secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo fez uma visita a Roraima, região fronteiriça com a Venezuela. O chefe da diplomacia de Donald Trump esteve em Boa Vista-840 quilômetros de Manacapuru - e foi ciceronizada pelo chanceler Ernesto Araujo. A visita foi duramente criticada, por ter ocorrido durante a campanha eleitoral em que Trump busca a reeleição, por ter passado na região de fronteira e por ter emitido um sinal belicoso dos EUA e a relação do Brasil com a Venezuela.

LANÇAMENTO DO MÍSSIL

O valor gasto na chamada Operação Amazônia, que incluiu o lançamento de mísseis com alcance de 80 quilômetros, foi obtido pelo globo por meio da lei de acesso à informação. A lei também foi usada para obter informações sobre a natureza inédita da operação. Anteriormente, o Ministério da Defesa se recusou a fornecer essas informações.

“Dentro da situação criada e com os meios concedidos, foi a primeira vez que ocorreu esse tipo de operação”, disse o Exército ao relatório. Os R $ 6 milhões gastos saíram do Comando de Operações Terrestres (Coter). A Força não informou os demais gastos com a operação de treinamento e simulação de guerra, além de combustível, horas de voo e transporte de civis.

“Vários meios militares foram empregados, como veículos, aeronaves (aviões e helicópteros), balsas, embarcações regionais, balsas, peças de artilharia, o Sistema de Lançamento de Foguetes Artilharia do Exército Astros, canhões, metralhadoras, 'obus' Oto Melara e morteiros 60, 81 e 120 mm, além de veículos especiais e caminhões ”, disse o Exército.

Simulações de conflito e treinamento militar já haviam sido feitas outras vezes, mas em menor escala, sem a utilização de todos esses equipamentos e em uma articulação entre Exército, Marinha e Aeronáutica. O relatório solicitou ao Ministério da Defesa e ao Exército, também via Lei de Acesso, informações sobre o tamanho das ações anteriores. A defesa não respondeu e disse que caberia ao Exército responder. A Força informou que a Operação Amazônia, como foi feita, não tem precedentes.

MAIOR ORÇAMENTO

O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e o comandante do Exército Edson Leal Pujol foram à região do “conflito” no dia 14 de setembro. Acompanharam, por exemplo, o disparo de mísseis.

O sistema Astros, com múltiplos lançadores de foguetes, é considerado um projeto estratégico para o Exército. Como outros projetos, você terá mais recursos previstos no orçamento de 2021. A proposta orçamentária enviada ao Congresso prevê R $ 141,9 milhões para esses mísseis em 2021. Neste ano, a previsão é de R $ 120,7 milhões.

Segundo informações do comando militar da Amazônia, 20 foguetes foram disparados pela artilharia do Exército no dia 15, no quilômetro 61 da Rodovia AM-010. O objetivo era "neutralizar uma base militar inimiga". O Exército afirma trabalhar na elaboração de lançadores de foguetes com alcance de 300 quilômetros.

Três dias depois da incursão de Azevedo e Pujol na simulação de guerra na Amazônia, Pompeo, secretário de Trump, visitou Boa Vista ao lado de Araujo. O prefeito Rodrigo Maia (DEM-RJ) classificou a visita como uma “afronta” à “arrogância de nossa política externa e de defesa”. O chanceler brasileiro reagiu e disse que Brasil e Estados Unidos “estão na vanguarda da solidariedade com o povo venezuelano”.

A guerra entre o ”azul“ e o “vermelho” foi provocada pela invasão do território “vermelho” no “azul”, segundo simulação feita pelo Exército. Os militares envolvidos atuaram na "libertação" de territórios como as cidades amazônicas de Manacapuru, Moura e Novo Airão. Segundo o Ministério da Defesa, houve ações também em Rondônia.

Não houve ações em Roraima, segundo a pasta. Ainda assim, a operação contou com a presença de militares que atuam diretamente nas regiões de fronteira, como os da brigada de São Gabriel da Cachoeira (município do Amazonas na fronteira com Venezuela e Colômbia) e os da brigada de Boa Vista, capital de Roraima, estado que é a principal porta de entrada dos refugiados venezuelanos no Brasil.

Participaram da operação as brigadas do comando militar da Amazônia, mais o Grupo de Artilharia de Rondonópolis (MT), o grupo de mísseis e foguetes de Formosa (GO), o Comando de Operações Especiais de Goiânia, a brigada de artilharia antiaérea do Guarujá (SP ) e a Brigada de Infantaria Paraquedista do Rio.

MUDANÇA DE ESTRATÉGIA

Em agosto, o globo mostrou a mudança de estratégia do Governo de Jair Bolsonaro para a atuação das Forças Armadas, com a previsão inédita de uma “rivalidade entre estados” na esfera regional e uma associação entre essa “rivalidade” e o necessidade de ampliar o orçamento de defesa, que chegaria a 2% do PIB nacional. A estratégia aparece nas atualizações dos documentos oficiais das forças, a chamada Política e Estratégia de Defesa Nacional, encaminhados ao Congresso. Nos documentos, o governo Bolsonaro prevê pela primeira vez a ocorrência de “tensões e conflitos” no entorno do Brasil.

Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério da Defesa afirma que a operação Amazônia foi realizada entre os dias 4 e 23 de setembro. O Exército informou que a operação ocorreu entre 8 e 22 de setembro.

Segundo o folder ““ foi um exercício de campo com tropas em solo que simulou uma ação convencional no contexto de amplo espectro e em ambiente operacional de selva ”.“ As ações aconteceram em uma imensa área e tiveram como objetivo estratégico elevar a operacionalidade do comando militar da Amazônia. A operação consiste em uma importante preparação para a atividade fim das Forças Armadas, a defesa da soberania nacional, principalmente em uma região que tem a prioridade do Brasil ”, disse o ministério.

O relatório enviou perguntas ao Itamaraty e à Embaixada dos Estados Unidos em Brasília sobre a visita de Mike Pompeo à região de fronteira com a Venezuela, ao mesmo tempo em que o Exército simulava guerra. Não houve retorno até a publicação deste relatório.