Valor econômico, v. 21, n. 5127, 13/11/2020. Política, p. A13

 

Raça pesa mais que gênero na divisão de recursos

Malu Delgado

13/11/2020

 

 

Levantamento da FGV avaliou o financiamento de campanhas

A raça passou a ser um marcador mais relevante que o gênero na repartição de recursos eleitorais, quando comparadas as disputas de 2014 e 2018. Pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV) avaliaram o financiamento de campanhas eleitorais e concluíram que as mulheres brancas passaram a receber mais recursos, proporcionalmente, do que homens negros.

As candidatas negras continuam sendo as mais subfinanciadas, ainda que a distribuição de recursos para esse segmento também tenha apresentado evolução. Os dados da pesquisa constam em livro que será lançado virtualmente hoje, “Candidatas em jogo: Um estudo sobre os impactos das regras eleitorais na inserção de mulheres na política”.

A coordenadora do estudo, Luciana Oliveira Ramos, professora de direito constitucional da FGV-SP, destaca que as mudanças nos marcos legais em 2018 beneficiaram as mulheres candidatas, mas alerta que as negras ainda são as que menos recebem recursos. Em 2014, essas candidatas ficaram com apenas 1,8% de todos os recursos distribuídos em campanhas. Quatro anos depois, houve elevação desse percentual para 5,7%, mas ainda há muita distorção quando se compara com os recursos destinados a homens brancos, por exemplo.

Os candidatos homens e brancos receberam, em 2014, 74,4% dos recursos, enquanto em 2018 esse valor caiu para 61,4%. Já os homens negros receberam 16% em 2014 e se mantiveram num patamar equivalente, de 16,7%, em 2018. A situação das mulheres brancas é a que apresentou a modificação mais evidente, saltando de 7,8% em 2014 para 16,2% quatro anos depois.

“Apesar de algumas mudanças entre 2014 e 2018, em termos percentuais, os recursos foram distribuídos de acordo com a seguinte hierarquia, em ordem decrescente: homens brancos, homens negros, mulheres brancas, mulheres negras”, aponta o estudo. No entanto, quando considerada a proporção de candidatos no pleito, as mulheres brancas ficaram com fatia maior de recursos do que os homens negros, conclui a pesquisa.

Esse salto do financiamento para mulheres ocorreu por conta das mudanças das regras em 2018. Em 2014, ainda eram permitidas as doações de pessoas jurídicas para campanhas. Em 2018, o financiamento privado de empresas foi vetado e instituiu-se o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).

Ainda naquele ano, o Supremo Tribunal Federal determinou que ao menos 30% dos recursos do fundo partidário deveriam ser destinados a candidatas mulheres, já que havia a cota mínima de candidaturas femininas estabelecida desde 1997. O fato é que apesar de haver a obrigatoriedade de cotas para candidaturas femininas, nunca havia se discutido, até então, o tema financiamento entre homens e mulheres.

Para as eleições deste ano houve outra novidade que, segundo a professora Luciana Ramos, deve provocar consequências futuras: também por decisão do STF, as candidaturas de negros terá que receber o financiamento proporcional do fundo partidário, assim como já ocorre com a determinação de gênero.

Se em 2014 quase 90% de todos os recursos destinados às campanhas eleitorais foram para homens (brancos e negros), em 2018 essa fatia global caiu para 78%, aumentando a parcela distribuída a mulheres “para um pouco mais de 20% dos recursos totais”, aponta a pesquisa da FGV.

Esses estudos, lembra Ramos, serviram de embasamento para que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, defendesse a cota de candidatos negros, regra que passou a vigir em 2020.

Segundo a professora de direito, o que motiva a pesquisa, atualizada a cada pleito, é entender de que maneiras as regras moldam comportamentos e afetam na representação feminina na política. “Infelizmente, em direito, sabemos que a lei não necessariamente muda muito o comportamento, mas gera impactos positivos”, pontua Luciana Ramos.

A pesquisadora enfatiza que a política de cotas para mulheres existe desde 1995, e houve a norma da cota de 30% introduzida em 1997. No entanto, por décadas, a inserção de mulheres na política não foi significativa devido aos óbices financeiros. “Ainda há alto grau de descumprimento dessa regra”, observa Luciana Ramos, lembrando que muitos partidos descumprem as determinações legais.

“Quanto menos mulheres candidatas, menos mulheres eleitas. Se o partido não se sente na obrigação de cumprir a lei, são menos mulheres na política. São mais de duas décadas de legislação, ainda não cumprida.”

Em relação a candidaturas fictícias ou laranjas de mulheres, outro dado preocupante, Luciana Ramos alerta que isso pode ocorrer neste pleito de 2020 em grande escala com as candidatas negras, exatamente a partir da nova decisão do STF.

As investigações sobre laranjas em 2018, diz ela, mostrou casos em que claramente os recursos de campanhas de candidatas fictícias voltavam para os partidos. “Isso é o laranja mais grave, fraude, crime eleitoral, desvio de recursos eleitorais. Imagino que isso possa acontecer muito agora com mulheres negras. Não tenho dúvida de que essas novas regras, com mudança de financiamento, podem ter levado a esse tipo de prática”, lamenta a professora.

Luciana Ramos admite que as conclusões da pesquisa surpreenderam. O sub-financiamento para candidaturas negras, diz ela, já era esperado, por conta do racismo estrutural da sociedade brasileira. “Mas não achávamos que seria tão evidente assim essa mudança, de jogar as mulheres brancas numa posição melhor do que os homens negros”, concluiu.