Título: Papa não colaborou com a ditadura, diz nobel da paz
Autor: Amorim, Diego
Fonte: Correio Braziliense, 15/03/2013, Mundo, p. 14

Adolfo Pérez Esquivel, defensor dos direitos humanos sob o regime militar, desmente que o cardeal Bergoglio tenha entregado sacerdotes à repressão

O escritor argentino Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1980, negou que o papa Francisco tenha tido qualquer vínculo com a ditadura militar que vigorou no país entre 1973 e 1983. Esquivel, premiado justamente pelo trabalho na defesa dos direitos humanos durante o regime, saiu em defesa no novo pontífice em meio às discussões sobre a responsabilidade do então bispo jesuíta no sequestro de dois padres da ordem, em 1976, e sobre a participação da hierarquia católica em crimes cometidos pelo governo. “Havia bispos que eram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não”, afirmou Esquivel à rede BBC.

Apesar da intervenção do Nobel da Paz, entidades que dão apoio às vítimas da ditadura argentina não receberam bem a eleição do cardeal Jorge Mario Bergoglio. Nas redes sociais, membros de organizações como a Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio (Hijos, em espanhol) fazem questão de lembrar as acusações feitas a Bergoglio já como arcebispo de Buenos Aires. “A cúpula da Igreja também foi a ditadura: Bergoglio é acusado de crimes contra a humanidade. Não se esqueça”, diz a instituição em sua página no Twitter. Segundo Martín Fraga, membro da Hijos, as entidades argentinas não acreditam que o papa será capaz de “ter uma postura crítica a respeito de suas ações no passado”.

Um comunicado das Mães da Praça de Maio, uma das principais associações que buscam desaparecidos durante o período do regime, lembrou a perseguição aos próprios membros da Igreja durante a década de 1970. “Fizemos uma lista de 150 padres assassinados pela ditadura, casos que nunca foram comentados pela Igreja oficial. A Igreja oficial é opressora, mas a do Terceiro Mundo é libertadora. Seguimos mantendo relações somente com os sacerdotes do Terceiro Mundo e, sobre o papa nomeado ontem (quarta-feira), só temos a dizer amém”, informou a organização.

Acusações

A denúncia sobre o suposto vínculo do então bispo Bergoglio com o regime militar foi feita pelo jornalista Horacio Verbitsky. No livro El Silencio, publicado em 2005, Verbitsky apresenta testemunhos segundo os quais, em 1976, Bergoglio — na época líder dos jesuítas na Argentina — teria retirado a licença de trabalho dos padres Orlando Yorio e Francisco Jalics, dias antes de eles serem detidos por agentes do governo que os levaram à Escola Mecânica da Armada (Esma), uma das unidades militares transformadas em centros clandestinos de detenção para presos políticos. A interpretação da sequência de eventos levou as vítimas a acreditarem que Bergoglio teria entregado os sacerdotes à repressão. “Eu conheço pessoalmente muitos bispos que pediram à junta militar a libertação de prisioneiros e padres, mas não foram atendidos”, relatou Pérez Esquivel.

Eurico Gonzalez, professor de sociologia da Universidade de Brasília (Unb), afirma que “não é de estranhar” que o clero argentino da década de 1970 estivesse próximo ao governo, uma vez que a Constituição define o catolicismo como religião de Estado. “Nenhum clérigo está livre de manter relações com o governo. Eles têm um ministério para o controle da liberdade de religião”, explica. Osvaldo Coggiola, professor de história contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que o regime militar argentino adotou leis que beneficiaram financeiramente a Igreja. “O papel da Igreja na ditadura não é tão conhecido, e agora o mundo inteiro vai falar sobre isso”, disse Coggiola.

Enquanto arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio chegou a ser chamado para testemunhar em um processo relacionado ao roubo de bebês de prisioneiras políticas. Em 2011, foi convocado por uma juíza da França para uma audiência — à qual nunca compareceu — sobre o desaparecimento de um padre francês na Argentina, em 1976.

Opção pelos pobres

Angela Espinola, moradora de uma favela em Barracas, nos arredores de Buenos Aires, exibe uma foto em que ela e a irmã Eliza seguram violões. Entre elas, o cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje papa Francisco, que na época costumava celebrar missas na capela da Virgem de Caacupe. Fiéis da paróquia comemoraram com especial alegria a eleição do pontífice argentino, que recordam como um sacerdote “generoso” e “preocupado com os pobres” — embora não seja um adepto da Teologia da Libertação, corrente teológica latino-americana que afirmou, nos anos 1970, a opção preferencial pelos pobres.

A hermana se emociona

Para uma argentina de 65 anos, moradora de um bairro de classe média na zona oeste de Buenos Aites, a eleição do cardeal Jorge Mario Bergoglio como papa Francisco foi especialmente marcante. “É um golpe muito forte, que emoção! Escutar essa multidão gritando ‘Viva o papa!’...Pobre homem!”, disse María Elena Bergoglio, imaginando o irmão mais velho saudando a multidão na Praça de São Pedro. “Quando ouvi a notícia, chorei. Não consegui dizer nem uma palavra sequer. Só tenho vontade de abraçá-lo”, contou a “menina de 65 anos”. O novo pontífice é o primogênito entre cinco irmãos, dos quais Jorge e María são os únicos vivos.

Vestida com suéter verde-escuro, o cabelo grisalho preso, ela atendeu dezenas de jornalistas diante de sua casa, no bairro de Ituzaingó. Por conta dos 11 anos de diferença, ela hesitou em falar de “um irmão com quem brincava, mas que sempre foi um parceiro muito presente, apesar das distâncias”. “Meus sentimentos não estão em ordem na mente, porque foi um baque muito forte, um fato histórico”, repetiu. Na imagem construída por María Elena, Jorge Bergoglio “é muito hermético”. Mas ela notou, na primeira aparição pública do papa Francisco, que “a expressão do rosto mostrava plenitude”.

“Eu nunca pensei que ele seria papa”, confessou, ainda um tanto incrédula. “Meu irmão cumpria suas funções, com responsabilidade crescente, mas eu nunca acreditei.” Questionada sobre como poderá ser o pontificado, ela apenas observou: “Sabe qual é a inclinação dele? Trabalhar para os pobres, para os marginalizados”. María Elena pediu “orações para que o Espírito Santo o fortaleça” e admitiu o sentimento de “orgulho”, mas compartilhado “não apenas como uma família, mas como povo argentino”.