Título: Um dia de Francisco
Autor: Amorim, Diego
Fonte: Correio Braziliense, 15/03/2013, Mundo, p. 14

No dia seguinte à eleição, o papa dispensa adornos e carro oficial. Na primeira homilia, um recado para a Igreja: viver Jesus Cristo

Fiel nos gestos ao nome que escolheu, o papa Francisco mostrou desde as primeiras horas de pontificado a intenção de seguir, à frente da Igreja, os passos do santo que o inspirou. O argentino Jorge Bergoglio, escolhido sucessor de Bento XVI, usou as palavras para defender o Evangelho e as atitudes para sinalizar novos tempos no Vaticano. Na primeira homilia, na mesma Capela Sistina onde fora eleito na véspera, pediu que a Igreja se mantenha ligada às raízes e evite as tentações da modernidade. “Se nós não professarmos Jesus Cristo, nos converteremos em uma ONG piedosa”, declarou diante dos demais 114 cardeais eleitores. Uma de suas primeiras medidas sinalizou ao diálogo entre religiões: uma carta enviada à comunidade judaica na qual prometeu contribuir para o progresso das relações entre judeus e católicos.

Como o ineditismo do nome pontifício, as primeiras atitudes do papa mostraram um sutil rompimento com os antecessores. Já na primeira aparição, na sacada da Basílica de São Pedro, chamou a atenção o fato de o cardeal argentino não ostentar todos os paramentos próprios do Sumo Pontífice. Ele surgiu para a multidão todo de branco, sem a murça — espécie de capa vermelha usada comumente em momentos solenes. João Paulo II e Bento XVI vestiam o adorno quando as cortinas se abriram para eles, em 1978 e 2005, respectivamente. A estola papal, outra veste litúrgica, também só foi usada por Francisco na hora de abençoar a multidão. Ele dispensou o crucifixo de ouro designado aos papas em favor de um de aço. Mais tarde, o novo pontífice se reuniu com os cardeais para celebrar a eleição. Ao propor um brinde, brincou: “Que Deus os perdoe (pela escolha)”, arrancando risos dos colegas. Ele teria repetido o gesto de João Paulo I, em 1978. No cardápio, a habituais salada de entrada, com pasta ou carne como prato principal e sorvete e frutas para sobremesa. Na hora de retornar à residência Santa Marta, Francisco dispensou o carro oficial para seguir no mesmo ônibus com os cardeais — tendo ao lado o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Raymundo Damasceno.

O primeiro compromisso público como papa, de manhã, foi uma visita à Basílica de Santa Maria Maior, a maior e mais antiga igreja dedicada à Virgem em Roma. O pontífice decidiu entrar por uma das portas laterais, como os fiéis comuns. Após deixar um buquê de flores no altar, rezou sozinho por cerca de 10 minutos. Estava acompanhado, entre outros, do arcebispo Georg Gänswein, secretário particular do papa emérito Bento XVI. No caminho para a basílica, Francisco quis parar na Casa Internacional do Clero, onde ficou hospedado durante o pré-conclave, para pagar as diárias e recolher os poucos pertences.

À tarde, na Capela Sistina, celebrou a missa de encerramento oficial do conclave. Vestido com um simples traje dourado e coberto pela mitra papal, Francisco fez a celebração em latim, mas proferiu a homilia em perfeito italiano. O pontífice falou em “caminhar, edificar, confessar”. “Nossa vida é um caminho: quando paramos, não vamos para a frente”, disse. O tema do caminho já tinha aparecido no primeiro discurso diante da multidão, na Praça de São Pedro, e vaticanistas o interpretaram como declaração de disposição para enfrentar os problemas da Igreja e seguir adiante.

Volta à rotina

Com o fim do período de sede vacante, a rotina começa a ser retomada na Praça de São Pedro, onde funcionários do Vaticano montavam um altar e colocavam cadeiras em frente à basílica, já para os próximos eventos públicos do novo papa. Sem chuva, diferentemente da noite anterior, fiéis se aglomeraram no meio da tarde diante de quatro telões para acompanhar a missa na Capela Sistina. Nos arredores da praça, vendedores expunham, já de manhã, artigos religiosos com o rosto de Francisco. Turistas e fiéis aproveitaram para comprar os primeiros relógios, santinhos e terços personalizados ao longo da madrugada.

Hoje, às 11h (7h em Brasília), o papa receberá todos os cardeais em audiência na Sala Clementina.

Colaborou Renata Tranches

7 milhões

Total de tuitadas sobre a eleição do papa Francisco desde o anúncio, segundo o Vaticano, o que corresponde a uma média de 130 mil por minuto

“Se não me casar com você, eu viro padre”

A frase teria sido dita por Bergoglio à namorada de infância, Amalia, há mais de 60 anos. Ela garantiu que os dois namoraram quanto tinham seus “10 ou 12 anos”. Na calçada de uma rua no bairro portenho de Flores, Amalia contou ter recebido dele uma carta. “Ele tinha desenhado uma casinha de teto vermelho e paredes brancas e escrito: ‘Esta casinha é a que vou comprar para você quando nos casarmos’”, relatou. No Colégio da Misericórdia, a diretora, irmã Martha Rabino, 71 anos, lembrou o papa como um menino travesso. “Era um diabo, um diabinho muito travesso, que sabíamos seria papa.”

Multiplicação e fiéis

A Basílica de Santa Maria Maior, também conhecida como Basílica de Nossa Senhora das Neves, nunca esteve no circuito do turismo religioso da Itália. Construída entre 432 e 440, durante o pontificado de Sisto II, ela se tornou, por meia hora, o centro do catolicismo no mundo. Enquanto o papa Francisco visitava o templo, cerca de 150 pessoas saudavam o líder da Igreja, do lado de fora. Depois que o pontífice argentino deixou o local e durante o restante do dia, a basílica ficou tomada de fiéis e curiosos. É uma tradição, entre os papas eleitos, visitar a basílica ao menos uma vez. Ontem, em mais uma prova de humildade, Francisco não permitiu que as portas fossem fechadas. “A igreja é de todos e para todos, deixe as portas abertas”, disse.