Título: Esperança latino-americana
Autor: Amorim, Diego
Fonte: Correio Braziliense, 17/03/2013, Mundo, p. 19

PONTÍFICE ARGENTINO PRECISARÁ ENFRENTAR GOVERNOS POPULISTAS PARA ESTENDER INFLUÊNCIA DA SANTA SÉ E COMBATER O FOSSO ENTRE RICOS E POBRES NA REGIÃO

“Vivemos na região mais desigual do mundo, a que mais cresceu e a que menos reduziu a miséria.” O argentino Jorge Mario Bergoglio pronunciou essa frase durante uma conferência de bispos da América Latina, seis anos atrás. O então cardeal era um homem incomodado com as mazelas sociais da região que concentra 40% da população católica do planeta. Conservador moderado, manteve oposição aos governos do casal Néstor e Cristina Kirchner — quando esteve à frente da Conferência Episcopal da Argentina, criticou várias decisões da presidente. No comando da Igreja Católica, Bergoglio não deve abandonar a preocupação com os mais pobres nem a disposição de questionar abertamente governos latino-americanos que ele julgar afastados da linha doutrinária da Igreja Católica.

De acordo com o porta-voz da Santa Sé, Federico Lombardi, o papa Francisco já estaria enfrentando uma “campanha difamatória” da “esquerda anticlerical”. A julgar pela reação de governos socialistas da América Latina, o futuro não sinaliza relações calorosas com a cúpula da Igreja. A própria Cristina Kirchner mostrou comedimento ao felicitar Bergoglio. “É nosso desejo que tenha, ao assumir a condução da Igreja, um futuro trabalho pastoral, desempenhando tão grandes responsabilidades em prol da justiça, da igualdade, da fraternidade e da paz na humanidade”, escreveu, em carta a Francisco, a mandatária, que se encontra hoje com o papa, segundo o Vaticano.

O presidente de Cuba, Raúl Castro, também foi lacônico nas saudações ao pontífice. “Me cabe, em nome do povo cubano, fazer chegar à Sua Santidade minhas cordiais felicitações e melhores desejos para seu pontificado”, afirmou o chefe de Estado. O Planalto anunciou que Dilma Rousseff se reunirá, em caráter privado, com Francisco. Mas talvez seja pouco para aparar as diferenças entre o Brasil e a Santa Sé, principalmente em relação a temas como o aborto e o uso de preservativos. O boliviano Evo Morales acusa o Vaticano de organizar uma campanha contra seu governo. O líder interino da Venezuela, Nicolás Maduro, se limitou a defender que o presidente falecido Hugo Chávez intercedeu, junto a Cristo, pela eleição de Bergoglio.

“O papa Francisco não deixará de expressar seu desagravo com iniciativas políticas e sociais em países que não estiverem de acordo com a teologia e a moral conservadora defendidas por ele”, afirmou ao Correio, por e-mail, o salvadorenho Manuel Arturo Vásquez, especialista em religiões da América Latina pela Universidade da Flórida. Ao mesmo tempo, Vásquez lembra que Bergoglio tem a reputação de ser pragmático, inteligente e sensível à situação dos menos favorecidos, o que — na opinião dele — poderia abrir espaço para uma colaboração com poderes seculares. “Ele estará ocupado, tratando de lidar com as tensões e as controvérsias no seio da Igreja. Um conflito aberto com países pode distrair ou diluir sua capacidade de implementar reformas na Cúria Romana.”

Reforma moral

Segundo Vásquez, Francisco não se simpatiza com a Teologia da Libertação e adota uma interpretação menos sociopolítica e mais espiritualizada da realidade e do valor da pobreza. “Sua conexão com o movimento Comunhão e Libertação o torna mais integralista. Em questões econômicas, ele não adota tanto uma visão profética de denúncia, como fizeram os brasileiros dom Paulo Evaristo Arns e Pedro Casaldáliga”, analisa. O especialista acredita que tal atitude explicaria o posicionamento de Bergoglio frente à ditadura militar na Argentina, entre 1973 e 1983. Então bispo jesuíta, Bergoglio foi acusado de colaborar com os repressores, ao prestar informações sobre dois sacerdotes de sua própria ordem. “O papa quer uma reforma moral das estruturas sociais, a fim de que concordem com as doutrinas da Igreja. E isso pode incluir a defesa da dignidade dos mais pobres”, acrescenta.

Vigílio Arraes, professor de história contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), explica que a relação de Francisco com outros países da América Latina ainda será desdobrada. “Como arcebispo de Buenos Aires, o relacionamento ocorria de modo indireto, por causa do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), cujo último encontro aconteceu em 2008”, explica. Ele aposta na possibilidade de o pontífice devotar mais atenção à região, pelo fato de ser hispânico. “A atenção deve se centrar na apuração de escândalos, como os ocorridos no México, e na tentativa de evitar a dispersão de fiéis”, prevê. Arraes diz que, apesar de Bergoglio se mostrar apartidário, as críticas do religioso ao neoliberalismo e à desigualdade social o situariam à esquerda. “Como papa, não creio que ele faça menções específicas a um determinado país, a não ser em caso de perseguição a fiéis ou religiosos. Seus atritos com o governo Kirchner decorreram de críticas à política econômica.”

Doutor em teologia e professor da Universidad Javeriana de Cali, Diego Agudelo concorda que o Celam será essencial para pontuar essa relação. “A informação e a posição de Francisco dependerão muito da relação que ele tiver com cada uma das Conferências Episcopais de cada país e das relações — boas ou tensas — da Igreja com os governos.” Ele espera que Bergoglio apresente uma postura crítica frente a modelos populistas, centrados na permanência no poder. “Ele tomará posições claras, tendo como princípio a modernização do Estado, e reclamará coerência e respeito à vida.”

1,2 bilhão

Número de fiéis que a Igreja Católica mantém em todo o planeta, segundo dados divulgados pelo próprio Vaticano, em 31 de dezembro de 2010.

483 milhões Total de católicos que vivem na América Latina — 123 milhões deles são brasileiros.

ponto crítico / A eleição de um papa argentino pode mudar o foco de atenção da Igreja para os problemas da América Latina? sim “A América Latina é uma nova frente”

“O papa Francisco põe em grande relevo a centralidade da Igreja Católica latino-americana no futuro do catolicismo mundial. Ainda que não possamos prever, com total certeza, creio que o processo de secularização já está muito avançado na Europa para sofrer uma reversão. Assim, a América Latina — onde a Igreja enfrenta dinâmicas secularizantes e onde há um grande pluralismo religioso, com avanço gigantesco dos pentecostais — representa nova frente das lutas para definir o futuro do catolicismo.” » Manuel Arturo Vásquez, professor de religiões da América Latina na Universidade da Flórida

NÃO “O problema está na Cúria”

“A questão geopolítica da Igreja é muito pouco importante numa instituição com a Igreja Católica. Talvez haja uma melhoria em termos de relacionamento com os Estados e com as populações. Mas o grande problema é que o papa Bento XVI não conseguiu manter a linha de controle da Cúria que João Paulo II tinha. A Cúria tem adquirido poder muito grande desde o fim do pontificado de Paulo VI. Boa parte da crise na Igreja — como a pedofilia e os escândalos financeiros — vem do descontrole da Cúria.”

» Roberto Romano, professor de ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)