Correio braziliense, n. 20961, 13/10/2020. Política, p. 2

 

Ajuda a carentes e um trunfo eleitoral

Bruna Lima 

Edis Henrique Peres

Jorge Vasconcellos 

13/10/2020

 

 

Criado em outubro de 2003 — a partir da fusão de benefícios sociais lançados no governo de Fernando Henrique Cardoso —, o Programa Bolsa Família (PBF) vive o fim de seu ciclo como principal política pública de distribuição de renda e de redução das desigualdades sociais do país. No momento em que contempla mais de 13 milhões de famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, o programa, lançado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), está prestes a ser substituído por outro, de cobertura mais ampla, chamado Renda Cidadã, a ser financiado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ao longo de todos esses anos, o PBF escreveu histórias de esperança e superação, ao mesmo tempo em que se transformou em poderosa arma eleitoral.

Capaz de reduzir a pobreza em até 15% e a extrema pobreza em até 25%, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Bolsa Família ganhou ainda mais relevância em meio à crise do novo coronavírus. O Cadastro Único do programa, por exemplo, foi usado pelo governo federal para organizar os pagamentos do auxílio emergencial — lançado para mitigar os efeitos da pandemia junto aos trabalhadores informais e desempregados.

É com os auxílios de complementação à renda que, atualmente, Poliana Menesio, 35 anos, consegue manter os dois filhos e ela própria. Beneficiária do PBF desde 2013, Poliana começou recebendo R$ 289 por mês. Depois, o valor do seu benefício caiu para R$ 170, quando ela começou a trabalhar com carteira assinada. No entanto, por estar desempregada desde 2016, o valor sofreu um novo reajuste e, desde então, passou a R$ 211,00. Segundo ela, a filha mais nova, Ana Júlia, de 4 anos, ainda não está contemplada pelo PBF. O valor é gasto com a alimentação e outras necessidades dos dois filhos — além de Ana Júlia, ela é mãe de João Lucas, 7.

Poliana diz que encontra dificuldades para conseguir trabalho formal, pois, nas entrevistas, os empregadores questionam quem ficará com seus dois filhos no horário de expediente. “Eu até fiz várias entrevistas, mas há barreiras, porque, hoje, meus filhos dependem muito de mim. Além de eu ser mãe e pai, tenho de colocar alimento dentro de casa e lidar com a educação dos dois”, relata.

A beneficiária também conta que é complicado conseguir, apenas com o Bolsa Família, colocar alimento dentro de casa e pagar aluguel. Neste ano, ela perdeu o pai de sua filha para a covid-19. Era ele quem ajudava, ocasionalmente, com a alimentação e os gastos de casa. Diante da situação, para complementar a renda, faz diárias na casa de uma amiga e conta com a ajuda de quem conhece a sua história.

Assim como Poliana, 14,28 milhões de famílias estão cadastradas no PBF, o que corresponde, segundo o Ministério da Cidadania, a, aproximadamente, 43,6 milhões de pessoas. Em 2004, quando o programa virou lei, seis milhões de famílias eram assistidas e, na década seguinte, o número mais que dobrou. Já em 2017 — ano em que 3,4 milhões de pessoas deixaram a situação de pobreza extrema e outras 3,2 milhões superaram a pobreza, por meio do PBF —, os beneficiários passavam de 13,3 milhões, de acordo com dados do Ipea.

As filas para aderir ao programa, no entanto, são constantes. Em abril, o governo ampliou a verba do PBF, repassando R$ 3 bilhões adicionais para contemplar 1,2 milhão de famílias que estavam à espera do benefício. Mesmo assim, a demanda não consegue ser suprida e, em agosto, do total de 14,28 milhões de famílias cadastradas, foram efetivamente contempladas 13,6 milhões.

“O Bolsa Família só pode atender ao número de famílias que seu orçamento comporta, por força legal. No mês de agosto, a folha de pagamento foi custeada, quase em sua totalidade, por recursos do auxílio emergencial. Foram destinados mais de R$ 15,1 bilhões para atender 13,6 milhões de famílias (de um total de 14,28 milhões de famílias)”, justifica o Ministério da Cidadania.

O governo federal afirma que 95% dos beneficiários do Bolsa Família foram contemplados pelo auxílio emergencial e essa parcela da população está incluída na prorrogação do benefício emergencial. “Vale ressaltar que, após encerrar o prazo do auxílio emergencial, essas mesmas famílias continuarão no Bolsa Família e vão receber por meio da folha de pagamento do programa, observando sempre a disponibilidade orçamentária”, afirma a pasta.

Lixão

Para a subsistência, Helenilde Maria da Conceição, 46, moradora de Santa Luzia, na Estrutural, conta com a contribuição do governo. Desde que veio morar em Brasília, em 2002, a ex-catadora tinha o lixão da Estrutural como fonte de renda. Os objetos de casa, roupas, brinquedos e comidas vinham das montanhas de descartes, daquilo que, para alguns, não servia mais. Com o fechamento do lixão, em 2018, Helenilde ficou sem ter de onde tirar o sustento e passou a viver apenas com a ajuda do governo.

“O Bolsa Família é pouquinho, mas serve. Nessa pandemia, comecei a receber o auxílio emergencial. A situação não está nada boa, mas é melhor do que nada”, declara a baiana natural de Bom Jesus da Lapa, que vive numa casa improvisada com o marido e três dos sete filhos.

Enquanto o valor médio do Bolsa Família gira em torno de R$ 190 por núcleo familiar, o auxílio emergencial começou com R$ 600, sendo que 58,6 milhões de pessoas receberam, pelo menos, alguma das cinco parcelas do benefício desde que o programa foi criado, em abril. Os valores acabaram reduzidos para R$ 300, bem como o número de beneficiados, e o pagamento vai até o fim do ano.

É por meio de um de seus balizadores, o Cadastro Único de Programas Sociais (plataforma que reúne as informações sobre as famílias brasileiras mais vulneráveis), que a prestação do auxílio emergencial conseguiu ser implementada na pandemia. O canal serve como porta de entrada para as famílias acessarem diversas políticas públicas, como a Tarifa Social de Energia Elétrica, o Programa Minha Casa Minha Vida, a Bolsa Verde, entre outros.

Conseguir a contribuição do governo por meio de outros programas, como de assistência à moradia, pode até estar nos planos de Helenilde, mas não passa nem perto do que ela realmente almeja. “Hoje, eu não posso perder a ajuda do governo, principalmente nesta época de pandemia, mas eu quero um emprego. O meu maior desejo, agora, é conseguir minha carteira assinada, seja numa área de limpeza, serviços gerais, tenho experiência nisso. O que vier será uma bênção”, diz. Para conseguir avançar, a baiana não conta com a sorte, mas com a fé, “porque o pouco com Deus é muito, mas o muito sem Deus é nada”.

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Atenções voltadas à nova geração 

13/10/2020

 

 

No caminho pela erradicação da pobreza, o foco do Bolsa Família é na nova geração. Por isso, as diretrizes foram balizadas em torno da exigência de que os filhos dos beneficiários em idade escolar estejam matriculados e frequentando os colégios, com frequência de 85% da carga horária do ano letivo. Cuidados com a saúde, como vacinação em dia, também são condicionantes para o recebimento do benefício. Com isso, o programa se firmou, ao longo dos anos, como um potencializador de frequência e desempenho escolar, melhoria na segurança alimentar e redução da mortalidade infantil.

O receio de que o recurso poderia servir como um gatilho para que o beneficiário se mantenha afastado do mercado de trabalho ou seja estimulado a ter mais filhos para aumentar o benefício foi rebatido ao longo dos anos. O sociólogo Floriano Pesaro diz que o efeito não foi observado pelas pesquisas realizadas no Brasil, pois o recurso disponibilizado é pequeno. Ele também relembra que o programa, no início, era destinado a famílias com até três crianças, o que significa que um quarto filho não aumentaria o valor.

Depois, com a ampliação do programa, o Bolsa Família passou a considerar o núcleo familiar e a renda per capita. “Quanto maior era a família, maior era a chance de entrar no programa, pois era a renda da família dividida pelo número de familiares que importava. No entanto, mesmo considerando a renda per capita, o recurso dado nunca foi relevante a ponto de animar alguém a fazer mais um filho por conta disso. Esse raciocínio nunca foi, de fato, comprovado”, explica Pesaro. À época da implementação, o benefício cedido começava no valor R$ 50. Atualmente, varia entre R$ 89 e R$ 205, dependendo, ainda, da quantidade de filhos por família.

Desafios

Tomando como base os dados da Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2001 a 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou, no fim do ano passado, o balanço dos primeiros 15 anos do Bolsa Família, constatando a redução de 25% da extrema pobreza e 15% da pobreza, em razão do programa. O Bolsa Família responde — conforme o levantamento — por 10% de redução da desigualdade no Brasil, entre 2001 e 2015. Os desafios, contudo, não estão superados. O estudo revela que 64% dos beneficiados continuam em situação de extrema pobreza.

Segundo Pesaro, isso acontece porque o programa distribui dinheiro como ação principal, deixando a educação como consequência. “Programas de transferências de renda não distribuem conhecimento, distribuem dinheiro. E há uma desvalorização do poder de compra do beneficiário ao longo do tempo. O dinheiro é algo que nem sempre é gasto de forma estruturante, muitas vezes, é usado com bens de primeira necessidade, como comida. O beneficiário não consegue usar esse recurso para, por exemplo, pagar um curso ou uma formação”, pontua.

O programa, para o especialista, é uma forma de amenizar o sofrimento da pobreza extrema, mas não é capaz de tirar o beneficiário da situação em que está nem é sustentável a longo prazo, “pois diminui a desigualdade enquanto se está recebendo o benefício, mas, depois, a pessoa volta para a situação original”. Ele ressalta ser necessário bater sempre na tecla da educação e na oportunidade de emprego.

Pesaro comenta, também, o aspecto econômico da assistência à renda familiar. “Os programas de transferência de renda contribuem muito para a dinamização da economia, especialmente do pequeno comércio. Os beneficiários estão sempre comprando no comércio local, o que acaba ajudando a economia do Brasil”, frisa. “Esses programas transferem dos mais ricos, por meio dos impostos, para os mais pobres, por meio da renda. E os beneficiários contribuem novamente, tanto com a dinamização da economia quanto devolvendo parte desses recursos em impostos.” (BL, EHP*, JV)

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Alvo de disputa de políticos 

13/10/2020

 

 

O crescimento de beneficiados pelo Bolsa Família, a consolidação do programa e a demonstração dos resultados fizeram com que a iniciativa atraísse a atenção dos políticos nas disputas eleitorais. Sempre referido como uma das marcas dos governos do PT, o programa caiu nas graças, até mesmo, do presidente Jair Bolsonaro, que o criticava e o ameaçava de cortes durante a campanha eleitoral. Em 2019, em meio a um processo de isolamento político e de queda de popularidade, o chefe do governo mudou radicalmente e criou a 13ª parcela do benefício.

“Bolsonaro era crítico do Bolsa Família, agora é aliado”, afirma o diretor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Social, Marcelo Neri. Na avaliação do especialista, programas sociais são usados em sintonia com o calendário eleitoral, de forma que reajustes em ano pós-eleitoral são raros. Porém, ele ressalta que, nas três décadas passadas, durante os anos de eleição, a renda desses programas subiu duas vezes mais do que a média. “O Bolsa família é sempre um adversário duro para quem está na oposição e um aliado íntimo para quem está no poder. Esse é o jogo político”, destaca.

Com a classe política já de olho nas eleições gerais de 2022, a questão da renda básica voltou aos holofotes. A equipe econômica do governo ensaiou o lançamento do Renda Brasil, mas, ante a falta de consenso sobre as fontes de recursos, Bolsonaro foi a público declarar a desistência do programa. “Até 2022, no meu governo, está proibido falar em Renda Brasil. Vamos continuar com o Bolsa Família, e ponto final”, disse. Entretanto, no dia seguinte, tratou de costurar com o Congresso uma saída para um novo programa que pudesse chamar de seu.

Assim, foi impulsionada a discussão, no Parlamento, do Renda Cidadã, “uma espécie de 2.0 do Bolsa Família”, como descreve Marcelo Neri. Para ele, essa mudança se deve ao fato de que Bolsonaro precisa conquistar novos eleitores, além da sua base, composta, em grande parte, por pessoas contrárias a programas assistenciais do governo. “Com certeza, Bolsonaro tem boas e más notícias. As más notícias são em relação à sua base, mas, se ele vai disputar uma eleição majoritária e parar apenas na base que já possui, vai para segundo turno, mas perde a eleição”, ressalta.

O fato é que a implementação do auxílio emergencial aumentou e melhorou a visibilidade de Bolsonaro e, por isso, a ideia é dar continuidade à assistência, assim que as últimas parcelas do benefício forem pagas, no fim do ano. A intenção é que o Renda Cidadã varie entre R$ 200 e R$ 300, o mesmo valor que está sendo pago na extensão do auxílio emergencial.

Conforme simulações feitas por economistas do BTG Pactual, dependendo do valor do benefício e do número de famílias atendidas, o custo desse programa poderá variar entre R$ 48,7 bilhões e R$ 78 bilhões, no caso de 15 milhões de famílias, e entre R$ 81,2 bilhões e R$ 130 bilhões, no caso de 25 milhões de famílias. De acordo com o levantamento, o governo gasta R$ 265,4 bilhões com programas sociais anualmente. Para financiar o Renda Cidadã, propostas antes descartadas por Bolsonaro, como a desindexação de aposentadorias e do salário mínimo, começam a ser cogitadas. O programa ainda não tem data para ser apresentado, justamente por causa do impasse sobre como bancá-lo sem furar o teto de gastos — que limita as despesas à inflação do ano anterior. O anúncio deve ficar para depois das eleições municipais.

Ataque e contra-ataque

A presidente nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), acusou Bolsonaro de fazer uso político do Bolsa família e lembrou que o presidente, em diferentes ocasiões, ofendeu os beneficiários do programa. “O Bolsa Família é o maior programa de renda básica do mundo. É reconhecido nacional e internacionalmente, já foi premiado. É uma tecnologia social implantada e reconhecida. Se Bolsonaro quer melhorar a renda básica, ele não precisa criar um outro programa. Basta ampliar o Bolsa Família, o seu alcance para mais pessoas e o pagamento do Bolsa Família. Então, essa história de criar um outro programa para beneficiar mais pessoas, na realidade, tem motivação política”, sustenta.

A parlamentar reporta-se ao pleito de 2018 para criticar o presidente. “Vamos lembrar, aqui, que Bolsonaro, durante a campanha, disse que o pessoal do Bolsa Família era vagabundo, que no Nordeste ninguém conseguia empregada doméstica por causa do Bolsa Família”, diz.

As declarações de Hofffmann foram rebatidas pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). “O presidente, recentemente, gravou um vídeo dizendo que não queria mais o Renda Brasil e que ia ficar o Bolsa Família até o fim do governo. Ele falou isso, está gravado. Quem está propondo a reestruturação é o senador Marcio Bittar (MDB-AC). Ele que foi lá e disse ao presidente que gostaria de colocar na PEC dele a criação de um novo programa”, afirma o parlamentar.

Barros acrescenta: “O programa que está concebido como Renda Cidadã está no plano de governo do presidente Bolsonaro, então, não é este momento, este episódio político, nada disso; isso já estava lá no plano de governo, e ele foi eleito com essa proposta”. Ele explica que o novo programa funcionará como uma “rampa de ascensão social”, investindo também em qualificação profissional, “para que os jovens possam ascender ao mercado de trabalho, além de outras áreas de atuação em que a família que recebe o benefício seja incentivada a tomar caminhos que a levem a não depender mais do benefício do programa”. (BL, EHP*, JV)

*Estagiário sob a supervisão de Cida Barbosa