Título: Confrade a caminho da beatificação
Autor: DIEGO AMORIM
Fonte: Correio Braziliense, 20/03/2013, Mundo, p. 14/15

O padre jesuíta Carlos Murias, morto pela ditadura militar argentina, pode se tornar o primeiro beato reconhecido no pontificado de Francisco

A primeira beatificação do papa Francisco pode ser de uma vítima do regime militar argentino, informou ontem o jornal italiano La Stampa. O padre Carlos de Dios Murias, da ordem jesuíta — a mesma do pontífice —, tinha 36 anos quando foi sequestrado, torturado e morto por agentes da ditadura, em 1976. Segundo o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, foi o próprio cardeal Jorge Bergoglio quem deu os primeiros passos para possibilitar a beatificação de Murias e de mais cinco religiosos mortos na chamada "guerra suja". Como arcebispo de Buenos Aires, o papa entrou com pedido para que um milagre intercedido por eles fosse reconhecido, confirmou Lombardi.

Em julho de 1976, o padre argentino Carlos Murias e o francês Gabriel Longueville foram presos na paróquia da cidade de Chamical, na província de La Rioja, a 140km da capital, e levados para uma base militar. Dois dias depois, os corpos dos sacerdotes foram encontrados com os olhos perfurados, as mãos cortadas e diversas marcas de tiros. Padres que se dedicavam ao trabalho com pobres, e que de alguma forma contrariavam as diretrizes do governo e dos grupos econômicos que dominavam o país, foram perseguidos pelo regime, que durou de 1976 a 1983.

A escolha do cardeal argentino como papa realimentou questionamentos, em meios da esquerda argentina, à conduta de Bergoglio durante os anos de chumbo, quando era líder da Companhia de Jesus em Buenos Aires. Acusações de que ele teria sido omisso e poderia estar envolvido em atos de violação aos direitos humanos foram levantadas por familiares de vítimas e por jornalistas, mas acabaram frontalmente refutadas pelo papa e pelo Vaticano, que as classificou de "caluniosas e difamatórias". "Nunca houve uma acusação concreta e credível. A Justiça argentina interrogou-o uma vez, mas apenas como pessoa conhecedora dos eventos", disse o padre Lombardi na última sexta-feira.

Depoimento

O jornal Clarín divulgou ontem vídeos que mostram trechos do depoimento de quase quatro horas prestado pelo cardeal Bergoglio, em 8 de dezembro de 2010, durante o julgamento sobre o sequestro e a tortura de outros dois padres jesuítas. Orlando Yorio e Francisco Jalics foram levados à Escola de Mecânica da Marinha (Esma), um dos principais centros de detenção clandestina de opositores da ditadura, e permaneceram detidos por cinco meses. No vídeo, Bergoglio explica que se reuniu em duas oportunidades com o ditador Jorge Videla e com o comandante da Marinha, almirante Emilio Massera, para interceder pelos padres. Diz, ainda, que havia pedido cautela aos jesuítas, pois sacerdotes empenhados em trabalho pastoral no interior do país estavam recebendo ameaças. "No fim de 1975 e em 1976, percebi a preocupação normal de todos os padres que trabalhavam com essa opção (os pobres)", disse ele no depoimento.

O assassinato do padre Carlos Mugica, membro do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo, em 1974, precedeu a morte de Murias, Longueville e Enrique Angelelli, bispo de La Rioja — todos citados por Bergoglio em seu testemunho. Trinta anos depois da morte Angelelli, apontada na época como um acidente de carro, o general Videla foi formalmente acusado pelo homicídio do religioso, que teria sido atirado para fora da estrada enquanto dirigia pela província onde morava.

Jalics, hoje com 80 anos, vive em um mosteiro na Alemanha e informou, em um site da congregação, que se reconciliou com Bergoglio e não guarda rancores. "Celebramos uma missa juntos e nos abraçamos solenemente", lembrou ele. "É hora de dar tudo por terminado", concluiu. A juíza aposentada Alicia Oliveira, que conheceu o papa na década de 1970, já defendeu publicamente o pontífice, lembrando que ele chegou a oferecer a ela um esconderijo no seminário, para que pudesse fugir da repressão militar. O escritor Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do prêmio Nobel da Paz de 1980 por sua militância pelos direitos humanos, também defendeu o pontífice. Segundo ele, muitos sacerdotes foram "cúmplices do regime", mas Bergoglio "não foi um deles".