Título: Uma estreia No estilo franciscano
Autor: DIEGO AMORIM
Fonte: Correio Braziliense, 20/03/2013, Mundo, p. 14/15

Na missa inaugural, o papa desfila entre a multidão e chama os governantes à responsabilidade de livrar o mundo "da destruição e da morte"

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Cidade do Vaticano — A cerimônia de inauguração do pontificado do primeiro latino-americano a liderar os católicos teve tudo o que reza a cartilha da Igreja: do passeio de papamóvel até os cumprimentos às autoridades, passando por ladainhas, procissões, leituras bíblicas, sermão e cantos em latim. Mas, mesmo quando segue o roteiro, o papa Francisco faz diferente. Tomada por um silêncio contemplativo, a multidão formada por pelos menos 200 mil pessoas acompanhou as quase duas horas do rito milenar como novidade. Diante de autoridades de 132 países, representando os cinco continentes, o pontífice chamou os governantes do mundo à responsabilidade de “guardiões” da humanidade e do planeta, com a missão de protegê-lo dos “sinais de destruição e morte”.

Em 14 minutos de homilia (leia íntegra nesta página), já de posse dos símbolos da autoridade papal — o anel prateado e o pálio —, Francisco insistiu numa fala simples, mansa e gestual. “Não esqueçamos jamais que o verdadeiro poder é o serviço, e que o próprio papa, para exercer o poder, deve entrar sempre mais naquele serviço que tem o vértice luminoso na cruz”, disse, em meio a aplausos. Eufóricos, os milhares de fiéis não tiravam os olhos dos telões e do altar montado em frente à Basílica de São Pedro.

Agora formalmente empossado, o papa voltou a falar da necessidade de “abrir os braços para os mais pobres, os mais fracos, os mais pequeninos”. Desde a vitória no conclave, há uma semana, o primeiro papa formado na Companhia de Jesus dá sinais de que, à frente da Igreja, terá a simplicidade como aliada. Ontem, enquanto circulava no papamóvel sem a tradicional cobertura blindada, interrompeu o percurso cronometrado no meio do povo para beijar e abençoar crianças e um deficiente físico.

Na área reservada às delegações de Estado, 31 chefes de Estado e 11 chefes de governo, incluindo a presidente Dilma Rousseff, assistiram à celebração. Igualmente significativa foi a presença inédita do patriarca Bartolomeu I, líder da Igreja Ortodoxa grega, rompida com Roma desde o ano 1054. Diante deles, Francisco defendeu “a criação”, fazendo memória ao santo de Assis, amante da natureza, que o inspirou na escolha do nome. “Por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade em âmbito econômico, político ou social, a homens e mulheres de boa vontade: sejamos guardiões da criação. Não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste mundo”, pediu, mais uma vez sob aplausos.

Antes de concluir o discurso e pedir a oração dos fiéis, como se torna costume, o pontífice ponderou sobre a necessidade de “cuidar uns dos outros”, não apenas do ambiente. “Lembremo-nos de que o ódio, a inveja e o orgulho sujam a vida. Não devemos ter medo de bondade ou mesmo de ternura”, completou, emocionando a colombiana Monica Maria Penagos, 49 anos, residente em Roma. “Estou apaixonada por ele”, dizia.

“Novo tempo”

De hábito cinza no meio da multidão, o frei brasiliense Rafael Normando, 34, também se empolgou com as palavras e a postura do papa. Para o religioso, que faz mestrado em teologia dogmática na capital italiana, com ênfase em ecumenismo, Francisco conduzirá o catolicismo para “um novo tempo”. “Ele vai trazer de volta muita gente que estava fora da Igreja. Na verdade, já está trazendo”, acredita.

Com sorriso radiante, o missionário mineiro Gleison de Paula, 28, erguia a bandeira brasileira e comentava o didatismo de Francisco. “A Igreja é para servir: foi isso que ficou marcado hoje (ontem). Ele tem falado coisas que todo mundo já sabe, mas está conseguindo ser direto e objetivo”, detalhou. Perto de Gleison, uma freira se equilibrava sobre uma lata de lixo para, além de escutar, tentar ver o jeito simples do papa.

10 séculos de separação

O patriarca ortodoxo grego, Bartolomeu I, afirmou que sua presença na missa inaugural do chefe da Igreja Católica era um “momento histórico” desde o rompimento entre as duas Igrejas, em 1054. “Nem mesmo antes do grande cisma um patriarca de Constantinopla esteve presente na entronização de um papa”, indicou o monsenhor Bartolomeu a um canal de televisão turco. “Isso não aconteceu nem antes nem depois do século 11”, destacou o chefe espiritual dos ortodoxos. “Esse gesto quer mostrar a importância que atribuo às relações amistosas entre as duas Igrejas”, acrescentou. Quando foi anunciada a renúncia do papa Bento XVI, monsenhor Bartolomeu manifestou tristeza e o saudou como um amigo da Igreja do Oriente.

A primeira homilia Queridos irmãos e irmãs: Dou graças ao Senhor por poder celebrar esta Santa Missa de começo do ministério petrino na solenidade de São José, marido da Virgem Maria e padroeiro da Igreja universal: é uma coincidência muito rica de significado e é também o onomástico de meu venerado predecessor: estamos próximos dele com a oração, repleta de afeto e gratidão. Como vive José sua vocação de custódio de Maria, de Jesus, da Igreja? Com a atenção constante a Deus, aberto a seus sinais, disponível a seu projeto, e não tanto ao próprio.

Mas a vocação de proteger não apenas diz respeito a nós, os cristãos, e sim tem uma dimensão que antecede e que é simplesmente humana, corresponde a todos. É proteger toda a criação, a beleza da criação, como nos diz o livro do Gênesis e como nos mostra São Francisco de Assis: é ter respeito por todas as criaturas de Deus e pelo entorno em que vivemos.

É proteger as pessoas, preocupar-se com todos e cada um, com amor, especialmente pelas crianças, pelos idosos, que são mais frágeis e que geralmente ficam na periferia de nosso coração. É preocupar-se um com o outro na família: os cônjuges se guardam reciprocamente e depois, como pais, cuidam dos filhos, e com o tempo, também os filhos se tornarão cuidadores de seus pais.

E quando o homem falha nessa responsabilidade, quando não nos preocupamos com a criação e com os irmãos, então ganha espaço a destruição, e o coração fica árido.

Gostaria de pedir, por favor, a todos os que ocupam postos de responsabilidade no âmbito econômico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos “custódios” da criação, do desígnio de Deus, inscrito na natureza, guardiães do outro, do meio ambiente. Não deixemos que os sinais de destruição e de morte acompanhem o caminho deste nosso mundo.

Recordemos que o ódio, a inveja, a soberba sujam a vida. Proteger quer dizer, então, vigiar sobre nossos sentimentos, nosso coração, porque é de onde saem as intenções boas e ruins: as que constroem e as que destroem.

Não devemos ter medo da bondade, mais ainda, nem sequer da ternura.

Hoje, com a festa de São José, celebramos o início do ministério do novo bispo de Roma, sucessor de Pedro, que comporta também um poder. Nunca esqueçamos que o verdadeiro poder é o serviço e que também o papa, para exercer o poder, deve entrar cada vez mais nesse serviço, que tem seu cume luminoso na cruz. Deve colocar seus olhos no serviço humilde, concreto, rico de fé.