Correio braziliense, n. 20965, 17/10/2020. Cidades, p. 18

 

Jovens estão mais vulneráveis

Alan Rios 

Thais Umbelino 

17/10/2020

 

 

Medo, trauma e insegurança ocupam o lugar de inocência, amor e proteção. Essa é a realidade enfrentada por crianças e adolescentes que constam nas estatísticas trágicas de vítimas de crimes contra a dignidade sexual. Os números cresceram substancialmente no Distrito Federal neste ano. Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo Correio mostram que, no primeiro semestre, houve aumento de 29,6% desses crimes contra menores de 18 anos, comparado ao mesmo período de 2019 — passando de 246 para 319. Documentos revelam o crescimento de ocorrências de violência sexual em todos os quatro grupos de faixas etárias analisados, até os 17 anos (veja gráfico). Entre vítimas de até cinco anos, por exemplo, observou-se 57 registros nos primeiros seis meses deste ano, 137% a mais em paralelo ao mesmo recorte de tempo do ano passado.

A faixa etária com maior número de casos foi o grupo de 12 a 15 anos, com 113 vítimas. Janaína (nome fictício), 13 anos, é uma delas. Criança cheia de vida e alegre, que amava brincar e sonhava em ser professora, teve que deixar os brinquedos de lado para encarar a realidade de ser mãe. Janaína foi estuprada por um homem de 57 anos, violência que mudou para sempre a vida dela. Por motivos religiosos, a família decidiu que a criança teria o filho. Além de uma gravidez indesejada, Janaína perdeu a vontade de sair com os amigos e de brincar. "É uma criança cuidando de outra. Ela passou por uma situação bem complicada. Assumiu toda a responsabilidade de mãe e abdicou da infância. Hoje, a rotina dela é totalmente voltada para cuidar do filho", conta o pai da vítima, 35.

O abuso aconteceu onde a mãe da menina trabalhava, praticado pelo patrão. Ela era cozinheira e levava a menina ao restaurante para não deixá-la sozinha em casa. Em depoimento, à época, a responsável declarou que o homem considerava a filha dela como uma neta. "Ele oferecia presentes e era prestativo. Ao término da relação de trabalho, ele continuava a visitar a família alegando querer notícias da minha filha", lembra a mãe de Janaína, 42. Depois de um tempo, a garota começou a agir de forma estranha e, ao notar que o ciclo menstrual da filha estava atrasado, a mãe desconfiou de uma possível gravidez. Em conversa com a criança, ela descobriu que o agressor a obrigou manter relações sexuais com ele, sob ameaça de colocar ela e a irmã, de 9 anos, em um abrigo, longe dos pais.

"Desde então, ela (Janaina) começou a agir de maneira introspectiva, cada vez mais distante e triste. Não sai de casa para nada e não quer voltar a estudar. Ela nunca mais voltou a ser a mesma", lamenta o pai. O caso é investigado pela 26ª Delegacia de Polícia (Samambaia). "O suspeito está foragido, por força de mandado de prisão preventiva expedido pela Segunda Vara Criminal de Samambaia. Não há atualização sobre o caso até o momento", informou a Divisão de Comunicação da Polícia Civil (Divicom), em nota oficial.

Políticas públicas

No DF, há três unidades policiais especializadas em atender a ocorrências envolvendo a parcela da polução até os 17 anos: a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e as delegacias da Criança e do Adolescente I e II. No entendimento de quem atua nessas instalações, a pandemia deixou crianças e adolescentes mais vulreváveis. "Há essa violência sexual intrafamiliar em muitos lares, porque os agressores e as vítimas estão em maior convívio e ficaram confinados. Sem contar que as crianças estão tendo mais contato com a internet, muitas vezes sem supervisão, o que abre espaço para a pedofilia. Antes, nós tínhamos uma porta de entrada a esses casos com as escolas, mas, com elas fechadas, muitas vezes não é possível identificar. Então, ainda existe uma subnotificação imensa", comenta a delegada da DPCA Ana Cristina Santiago.

A violência, segundo a delegada, é praticada conforme ser dá a proximidade dos abusadores com as vítimas. "Temos padrastos, tios, avós praticando esses crimes, que acontecem porque existe essa relação íntima. É uma violência que não se materializa só com penetração. Às vezes, são condutas criminosas que não deixam vestígios", alerta Ana Cristina. A responsabilidade para observar esse tipo de crime, portanto, cabe a toda a sociedade, principalmente neste período de isolamento social. "Ao encontrar com a criança, deve-se observar se tem algo diferente nela e nos comportamentos. Ela era mais extrovertida e falante e, de repente, está mais calada, retraída e chorosa? Comia e, hoje, não come mais ou está comendo demais? É necessário prestar atenção em caso de ouvir algum grito ou choro, ou ver um roxo ou vermelhidão diferente na pele da criança. Nesse contexto, conselhos tutelares são essenciais para a polícia e para as escolas, porque eles vão entender a situação toda, se alguém precisa de encaminhamento psicossocial, benefício social, isso tudo", explica a delegada.

Um dos profissionais dessa rede de proteção é Thayline Soares, 29 anos, à frente do Conselho Tutelar 3 de Ceilândia. "Não paramos, trabalhamos diariamente para garantir os direitos dessas crianças, mesmo com elas em casa, conscientizando os pais para protegê-las", afirma a conselheira. "As pessoas precisam entender que todos nós somos responsáveis por zelar pelos vulneráveis e ter um olhar mais humano para nosso próximo. Precisamos ficar atento aos nossos filhos, vizinhos e ouvir mais a criança para saber o que está se passando e o que estão vivenciando", destaca Thayline Soares.