Correio braziliense, n. 20966, 18/10/2020. Mundo, p. 10

 

Eleição à sombra de Evo Morales

Rodrigo Craveiro 

18/10/2020

 

 

Cerca de 7 milhões de bolivianos devem escolher, hoje, se reconduzem ao poder o Movimento ao Socialismo (MAS), do ex-presidente e líder cocaleiro Evo Morales, ou se repassam a cadeira principal do Palacio Quemado, sede do Executivo, ao centrista Carlos Mesa — candidato do partido Comunidad Ciudadana (CC), que comandou o país entre outubro de 2004 e março de 2005. Sob forte polarização e em meio à tensão causada pela tentativa de Evo de influenciar as eleições, a partir do exílio na Argentina, a nação também elegerá, além do chefe de Estado e do vice, 36 senadores e 130 deputados da Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia. Arce, um economista de 57 anos, buscou capitalizar sua força na figura de seu "padrinho político" Evo Morales, para quem ele é "garantia de estabilidade, crescimento econômico e redistribuição das riquezas". O historiador e jornalista Mesa, 57, propõe sepultar o projeto socialista "masista" e substitui-lo por "um programa com sentido de Estado" e viável.

A pandemia, as animosidades políticas e a crise econômica injetam mais tensão no processo eleitoral. Em 15 de outubro de 2019, Evo Morales tentou um terceiro mandato, mas foi forçado a renunciar, atingido por acusações de fraude eleitoral e pela perda de apoio dos militares. O medo da violência levou a Organização das Nações Unidas (ONU), a União Europeia (UE) e a Igreja Católica a pedirem que os bolivianos votem em paz. As pesquisas apontam um confronto imprevisível entre Arce e Mesa, com um provável segundo turno, em 29 de novembro. Para vencer em primeiro turno, o candidato precisa obter maioria

absoluta (50% dos votos mais um) ou 40% dos votos e dez pontos de vantagem sobre o segundo colocado. Outros quatro candidatos disputam as eleições, sem chances de vitória.

Divisão
"Estamos divididos entre um bloco simpatizante do MAS e um bloco anti-masista. Eu prevejo um final aberto. Arce tem mais chances de ganhar no primeiro turno. Por sua vez, Mesa tem possibilidades de levar a decisão para o segundo turno. Os indecisos vão determinar o curso das eleições", afirmou ao Correio Marcelo Arequipa, doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana San Pablo (em La Paz). Ele entende que Evo Morales não goza de influência. "Ficou claro que existe, em meu país, mais 'masismo' do que 'evismo'. Há mais gente que segue o MAS do que simpatiza com Morales. Isso é muito importante. Finalmente, temos uma corrente política de partido, não de liderança populista", acrescentou.

Segundo Arequipa, a presidente interina, Jeanine Áñez, contribuiu com a derrocada da imagem de Morales. "Ela reprimiu duramente os protestos sociais e os marcou como se o MAS fosse sinônimo de corrupção, terrorismo e delinquência. Isso abriu espaço, na configuração da direita, para que o centrista Carlos Mesa se apresentasse como um candidato viável", observou.

Popularidade
O analista político Jorge Dulon Fernández, que também é gestor público e professor em várias universidades bolivianas, concorda que Evo perdeu muito de sua influência. "No melhor momento como presidente, ele tinha uma popularidade de 64%. Hoje, vive sua pior fase. O seu partido caudilhista MAS oscila entre 25% e 30% de apoio. Isso nos leva a pensar que a força de Evo foi minada pelas denúncias de corrupção, pedofilia e estupro, nunca provadas. Essa conjuntura não ajuda Arce, que chegou a discordar de algumas declarações de seu padrinho", disse ao Correio.
Fernández conta que Arce aparece na liderança em todas as pesquisas. O candidato Luis Fernando Camacho, apesar de figurar na terceira colocação, pode obter presença importante na Assembleia Legislativa Plurinacional. "É muito provável um segundo turno entre Mesa e Arce. Entre 16% e 20% dos indecisos não revelam o voto, mas creio que pensarão em apoiar mais Mesa do que Arce — 70% disseram que jamais votariam no candidato do MAS", explicou. "No segundo turno, as projeções apontam Mesa como novo presidente."

Ainda de acordo com o especialista, a pandemia da covid-19 desnudou várias urgências na Bolívia, principalmente nas áreas da saúde, da educação e da descentralização do poder. "As necessidades mais prementes são institucionalizar o Estado e seus papéis", aponta Fernández. O modelo econômico boliviano também enfrenta crise, com previsão de retração do Produto Interno Bruto (PIB) em 6,2%, a pior queda em 30 anos. "O MAS pretende se mostrar como estabilizador social e econômico; o Comunidad Ciudadana, de Mesa, quer exibir-se como organização política de propostas inovadoras e práticas."

PONTOS DE VISTA
Instituições cooptadas
Por Catalina Rodrigo Machicao
"A mais importante urgência é a restituição da institucionalidade, que foi cooptada pelo 'massismo', de Evo Morales, durante os 13 anos de seu governo, o qual nos deixou com uma economia débil (Bolivia segue como o país mais informal do mundo), um sistema de saúde pública deficiente e um sistema educacional carregado de ideologia. Somente por meio dessa ação, outros problemas que atingem a realidade boliviana poderão ser resolvidos. Creio que a principal diferença é que há dois candidatos, Luis Arce e Luis Fernando Camacho, que não planejam isso de forma alguma." 

Analista política, moradora de La Paz

Problemas a caminho
Por Marcelo Arequipa
"No dia seguinte à eleição, quem governar a Bolívia começará a ter sérios problemas. O principal deles é a crise econômica, que tende a explodir. Outro problema é a educação, pois o ano escolar foi enclausurado no país, devido à pandemia da covid-19. Os grandes desafios serão a economia, a saúde e a educação, e eles terão início logo depois da eleição. Creio que o ex-presidente Evo Morales não tem tanta força. Esta eleição significa sua aposentadoria da política."

Doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana San Pablo (em La Paz)

Missões cumpridas

Por Jorge Dulon Fernández

"O legado da presidente interina, Jeanine Áñez, foi positivo. Ela tinha duas missões importantes: pacificar o país e convocar eleições. E conseguiu cumprir com os dois objetivos. No entanto, viu-se envolta em escândalos de corrupção relacionados a respiradores para pacientes com covid-19. Ao assumir o governo de transição, ela quis ser candidata a vice de Carlos Mesa, mas ele afastou-se dela. Ideologicamente, Mesa é, hoje, mais de centro-esquerda."

Analista político, gestor público e professor em várias universidades