Título: Descaso com a obra do artista
Autor: Maia, Amanda; Laboissière, Mariana
Fonte: Correio Braziliense, 22/03/2013, Cidades, p. 28

Apesar do reconhecimento internacional, parte do legado de Athos Bulcão em Brasília sofre com a falta de cuidado e de manutenção. Alguns trabalhos passam por restauração, mas boa parte revela abandono

A partir da inauguração, em 1960, Brasília ganhou o privilégio de abrigar diversas obras de Athos Bulcão. O Palácio do Alvorada, o Teatro Nacional, a Torre de TV e o Hospital Sarah aparecem na lista de instalações que receberam não só azulejos como relevos de madeira e em alvenaria nas duas primeiras décadas de ocupação do Distrito Federal. Mas se engana quem pensa que tanta beleza recebe a atenção e o cuidado necessários da cidade na qual o artista carioca escolheu para viver. A arte está nas ruas, em residências e no interior de prédios públicos e privados. Muitas delas, no entanto, revelam o visível desgaste provocado pelo tempo, além de descaso e desrespeito.

A primeira obra de Athos na capital, a da Igrejinha, passou por uma restauração recentemente e se encontra preservada. Ainda assim, como os azulejos ficam na parte externa, estão sujeitos à ação da chuva, do sol, dos animais e da população. Algumas peças estão sujas e desbotadas. A secretária executiva da Fundação Athos Bulcão (Fundathos), Valéria Cabral, explica que a entidade participa de todo o trabalho de reparo em peças do artista, que depende de recursos externos.

Como há 206 obras na capital, a maioria com mais de duas décadas de existência, é preciso estabelecer uma ordem de prioridade. “A nossa função é preservar a obra, não importa onde ela esteja. Somos nós que contratamos, executamos e acompanhamos a restauração. Tem a minuciosidade de limpar o azulejo por horas, o que faz uma diferença impressionante. Depois, entra o nosso azulejista para reparar. Nós mandamos vários pedaços quebrados, ele monta e devolve para a gente fazer as provas”, explica.

Os estudantes de arquitetura equatorianos Pedro Moncayo, 22 anos, e Paul Moscoso, 24, saíram de Cuenca para visitar diversas capitais brasileiras. Brasília virou parada obrigatória, assim como a Igrejinha, por causa do arquiteto Oscar Niemeyer. Os jovens não conheciam Athos Bulcão e se encantaram com os azulejos.

Reformas

Mas, se um dos principais pontos turísticos da cidade manteve a qualidade da marca do artista, outros prédios sofrem com a falta de uma intervenção. Ontem, representantes da Fundathos, da Secretaria de Cultura e do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT) se reuniram para discutir a importância de se resguardar os painéis do Aeroporto JK diante das intervenções para a Copa do Mundo. As peças passarão por um restauro, assim como outros três pontos da cidade: o Mercado das Flores, o Instituto de Saúde Mental, no Riacho Fundo 1, e a Escola Classe 407/408 Norte, cujas reformas começaram. Os dois últimos, graças a recursos do Conselho Federal de Direitos Difusos do Ministério da Justiça. Os três prédios devem ficar prontos até o meio do ano.

O local onde funcionam as floriculturas 24 horas é um dos espaços que mais precisam de cuidados, pois os azulejos estão quebrados, e a área, abandonada. Na antiga Rodoferroviária, a mesma cena de descaso, com peças destruídas, sujas e tampadas por um tapume devido a uma reforma geral no espaço. Uma parte do painel de azulejos foi derrubada e, no lugar das peças originais, aparecem cerâmicas brancas comuns. Além do trabalho em preto e branco, o teto de lata modernista feito por Athos acumula poeira e teias de aranha. A estrutura não passa por limpeza limpa há anos pela dificuldade de manuseio.

Sede definitiva

Na quadra da Igrejinha da Asa Sul, na área residencial, fica o Jardim de Infância da 308 Sul. A unidade, construída em 1965, é composta de azulejos de 20cm x 20cm, com fundo na cor natural da cerâmica. Às vezes, o painel, aparentemente simples, passa despercebido. “O pessoal, incluindo estudantes de arquitetura e curiosos, chega a nos questionar se é mesmo do Athos, justamente por ter essa cor mais sóbria, diferente dos coloridos que ele fazia. Mas está de acordo com o projeto arquitetônico da escola, que deveria se parecer com uma gruta na parte interna”, detalha Maria Valderez Moraes, diretora da escola. As instalações passaram por uma reforma, mas a Secretaria de Educação não teve recursos para restaurar as peças.

Uma das esperanças para a proteção e a conservação do trabalho de Athos passa pela construção de uma sede definitiva para a Fundathos. Apesar de o projeto do prédio estar pronto — ele é assinado por Lelé Filgueiras, burocracia e dívidas impedem o início das obras. O caso está na Justiça. A assessoria de imprensa da Secretaria de Cultura informou, há pouco mais de uma semana, que o governo trabalha no sentido de criar um projeto de lei visando solucionar o impasse e doar um terreno para a Fundathos.

Curiosidades

» Foi sócio de Monteiro Lobato em uma empresa de exploração de ferro. » Sempre revelou fascinação por arquitetura. » Também estudou medicina, mas abandonou o curso. » Tentou ser ator ao ingressar em uma companhia de teatro. » Participou do protesto na Universidade de Brasília UnB que culminou na demissão de 200 professores em 1965. » Antes de se mudar para Brasília, passou por dificuldades financeiras e teve de sobreviver com decorações de interiores, algo que odiava. » Trabalhou com o pintor Cândido Portinari.

Depoimentos

“Trabalhei com Athos Bulcão desde os tempos da Pampulha. Era um homem bom, correto, cheio de qualidades. No campo da integração das artes com a arquitetura, sempre atuou com o maior talento.” Oscar Niemeyer, arquiteto

“Athos foi um artista universal. Com extrema generosidade, fez uma coisa que nenhum outro artista no mundo fez: a total integração de arte com a arquitetura. Há 40 anos que participamos de inúmeros trabalhos e nunca me canso de admirar seu gênio criador, seu impecável domínio das cores e a forma corajosa, inteligente e precisa com que interfere na arquitetura.” João Filgueiras, arquiteto e parceiro de projetos

“A função dos azulejos é a de amortecer a densidade das paredes a fim de tirar-lhes qualquer impressão de suporte.” Lucio Costa, urbanista

“Athos compreende o azulejo como módulo, como elemento constitutivo de espaço arquitetônico, com sua área individual, com sua matéria própria, com sua luz e superfície, como regra e como jogo.” Paulo Herkenholff, ex-diretor do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, um dos curadores do Museu de Artes do Rio (MAR)

“A arte de azulejar, perfeitamente integrada à arquitetura moderna, isto é, o azulejo encarado como composição modular, em escala industrial, atinge seu ponto máximo em Brasília.” Frederico Morais, crítico de arte