O globo, n. 31849, 18/10/2020. País, p. 4

 

Influência artificial

Alice Cravo

João Paulo Saconi

Pedro Capetti

18/10/2020

 

 

Venda de robôs nas redes persiste em meio a ações de plataformas e Justiça Eleitoral

 Infográfico mostra funcionamento do mercado de engajamento artificial

 Apesar dos esforços da Justiça Eleitoral, do Congresso e das próprias plataformas para coibir o uso das redes sociais de maneira automatizada com fins políticos e eleitorais, resiste na internet um mercado que viabiliza a venda de engajamento para falsear a percepção do debate público. O GLOBO mapeou a existência de ao menos dez serviços desse tipo, com maneiras facilitadas de pagamento. Um perfil de um candidato fictício — com nome e número inexistentes no mundo real — foi criado no Twitter para um teste e, mesmo sem seguidores, foi possível, por meio da compra de engajamento oferecida por empresas, fazer com que quatro publicações fossem replicadas centenas de vezes.

O uso de robôs para amplificar mensagens é uma das preocupações de autoridades nesta eleição, já que a redução da campanha nas ruas, em função da pandemia, potencializou a propaganda eleitoral na internet. 

Os serviços identificados incluem diversas redes sociais: é possível comprar compartilhamentos e seguidores no Twitter, curtidas para o Facebook e o Instagram e até visualizações para o Youtube ou ouvintes para o Spotify. 

O custo da influência nas redes varia entre R$ 2 e R$ 12,6 mil. No balcão de negócios virtual, há desde cem curtidas no Facebook (entre R$ 2 e R$ 20) a 50 mil retuítes (compartilhamento de publicações) no Twitter (R$ 619). O valor mais alto encontrado, de R$ 12,6 mil, é referente a cem mil “likes” no Facebook.

Seguidores também custam caro: 20 mil fãs no Twitter saem por R$ 3,9 mil, enquanto R$ 4,7 mil financiam uma base de 89 mil usuários no Instagram. O pagamento pode ser feito por cartão de crédito, boleto bancário e até com PagSeguro e PayPal.

O impulsionamento artificial já teve reflexos no debate político em 2020. A ferramenta Bot Sentinel, que monitora o uso de robôs no Twitter, listou, desde maio, 20 hashtags com indícios de que foram turbinadas de maneira automatizada — 25% são relacionadas à política nacional. Sobre o tema #FechadocomBolsonaroaté2026, por exemplo, foram identificadas 3.419 menções com sinais de automação — houve ainda 1.916 mensagens publicadas por robôs defendendo a prisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Candidatos envolvidos na disputa municipal, como a deputada Joice Hasselmann, postulante do PSL à prefeitura de São Paulo, também entraram na mira desses perfis, assim como o influenciador digital Felipe Neto, crítico contumaz do presidente Jair Bolsonaro e apoiador da candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo.

Além de potencializar o alcance de influenciadores ou marcas, o uso político das estruturas de automatização digital e ocultação de identidades tem preocupado parlamentares e magistrado. A CPI das Fake News funciona no Congresso há um ano, enquanto Câmara e Senado discutem, desde junho, um projeto de lei que tenta resolver a questão de maneira definitiva. Hoje, a legislação brasileira permite que conteúdos políticos sejam impulsionados pelas próprias empresas que gerenciam as redes sociais, mediante pagamento dos usuários, mas determina que isso ocorra com a devida identificação do responsável pela propaganda. 

As ações mais combativas das plataformas ainda não foram suficientes para cessar a oferta de serviços encontrados pelo GLOBO. Há, por exemplo, a opção de escolher se os seguidores ou curtidas comprados serão executados por contas com roupagem brasileira ou internacional, numa tentativa de criar coerência entre as publicações.

Na experiência conduzida pelo GLOBO, durante dez dias, um perfil de um candidato a vereador imaginário foi turbinado com dezenas de retuítes, cujo objetivo é aumentar a circulação de uma mensagem na plataforma. As contas responsáveis pela replicação apresentavam todos os indícios de robôs: combinação de letras e números no perfil, fotos aleatórias e uma linha do tempo sem publicações próprias. Uma parte do serviço foi entregue pelas quatro empresas contratadas e depois inviabilizada pelo própria rede social, que identificou as contas de atuação automatizada e as removeu de seus quadros.

MEDIDAS CORRETIVAS

O Twitter afirma que a robotização de contas viola as políticas da empresa e que tem sido “proativo em detectar comportamentos suspeitos”. Para a empresa, a retirada do ar das contas que engajaram as publicações mostra que as “políticas e medidas corretivas estão sendo implementadas”. O Twitter disse ainda que fez uma apuração interna sobre hashtags citadas e não identificou, em análise preliminar, sinais de "ação coordenada e artificial" e acrescentou que ferramentas como o Bot Sentinel têm se mostrado "metodologicamente falhos, porque só acessam sinais externos das contas".

O pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) João Guilherme Bastos afirma que o engajamento artificial pode dar relevância aos compradores, ainda que viole os termos de uso das próprias plataformas.

— Nas redes sociais, todo mundo pode falar, mas nem todos são ouvidos. Pode ter vantagem quem se apropria desses algoritmos para ter visibilidade — diz Santos.

Presidente da Comissão de Estudo de Publicidade e Serviços Jurídicos da OAB no Rio, o advogado Antonio Carlos Fernandes afirma que, além de violarem as regras das plataformas, as redes automatizadas de distribuição de conteúdos podem ajudar a criar imagens positivas falsas de políticos e personalidades — ou enfraquecer rivais:

— Em vez de um debate político polido, há a preocupação de difamar e atacar a honra de outros, deixando a democracia cada vez mais vazia e prejudicada.