Valor econômico, v. 21, n. 5133, 23/11/2020. Curtas, p. B8

 

Morte no Carrefour gera protesto e pressiona comando no país

Adriana Mattos

Chiara Quintão

23/11/2020

 

 

Crime prejudica imagem e os negócios da companhia, obrigada a fechar lojas

A morte de um cliente negro do Carrefour no estacionamento de uma loja da rede, em Porto Alegre, gera protestos em diversas capitais do país, desgastando a imagem da empresa e pressionando seu comando a reformular controles internos na área de segurança.

Na noite de quinta feira, um dia antes da celebração do dia da Consciência Negra, o trabalhador autônomo negro João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto por dois seguranças terceirizados da rede, após um desentendimento entre um empregado da loja e o cliente. Os dois seguranças foram presos em flagrante.

O crime gerou protestos em diversas capitais. Senadores cobraram explicações do Carrefour, o maior grupo varejista do Brasil, com R$ 62 bilhões em vendas anuais e 700 lojas. Nas redes sociais, clientes falam em boicote às lojas do grupo.

Um grande fornecedor da varejista, a Ambev, maior fabricante de cerveja do país, afirmou em nota não tolerar qualquer ato de racismo ou violência e que estava de luto pelo brutal assassinato de Freitas. Cobrou do Carrefour a tomar “medidas efetivas e imediatas”.

O Carrefour foi desligado da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, grupo que reúne grandes companhias no país

O CEO global do grupo francês, Alexandre Bompard, criticou, na sexta-feira, a subsidiária ao dizer que medidas tomadas até então sobre o caso eram “insuficientes”.

No sábado à noite, em pronunciamento na TV, o CEO do Carrefour no Brasil, Noel Prioux, lamentou a morte de Freitas, classificando-a de “tragédia de dimensões incalculáveis, cuja extensão está além da minha compreensão como homem branco e privilegiado que sou”. Pediu desculpas aos clientes, à sociedade e aos funcionários da companhia. E informou que estava assumindo o compromisso de tomar medidas para combater o racismo no país.

O responsável pela loja de Porto Alegre foi demitido e a empresa de segurança da loja, a Vector, teve o contrato rompido.

O Carrefour vendeu R$ 62 bilhões no país em 2019, cresceu 18% de janeiro a setembro deste ano e lucrou R$ 1,8 bilhão nesse período, o triplo de um ano antes. O mercado brasileiro é o segundo maior do grupo no mundo - só perde para a matriz, na França, onde a morte de Freitas também foi noticiada.

O crime reforça o debate em torno do racismo no país, levanta a discussão sobre o impacto na marca Carrefour e expõe as dificuldades de varejistas controlarem serviços terceirizados de segurança.

Em 2018, um cachorro foi morto por seguranças da loja do Carrefour, em Osasco (SP). Em fevereiro de 2019, um cliente morreu na rede Extra, do GPA, após ser imobilizado por um segurança. Seis meses depois, um promotor de uma loja do Carrefour no Recife (PE) morreu no local e a loja foi mantida aberta, com o corpo estendido no chão, coberto por guarda-sóis.

Para Fábio Borges, professor do programa de mestrado em comportamento do consumidor na ESPM, “a crise enfrentada pela empresa vai além de seu gerenciamento pontual”. Essa crise, diz ele, “não se soma à anterior vivida pela marca, com a morte do cachorro. Ela se multiplica. O consumidor olha isso e, mesmo que a empresa tenha tomado iniciativas recentes, ele pensa que a companhia não está alinhada com as pautas centrais do século 21”.

O professor observa que ainda que “ dizer que é difícil administrar serviços terceirizados numa empresa grande é algo que não seria aceito pelo consumidor. Gerenciar a complexidade é parte vital do trabalho desses grupos”.

Na visão de Manoel Antonio de Araujo, sócio da consultoria Capital Broker, o dano é inegável à marca, e o modelo de gerenciamento de terceirizados no varejo deveria evoluir. “O que se pode fazer é ampliar a fiscalização dos parceiros nos procedimentos de abordagem [aos clientes] e aprofundar o trabalho de conscientização interna e nos terceirizados. O varejo lida com milhões de pessoas todos os dias, está naturalmente exposto e tem consciência disso”, diz.

Em nota, a Vector, com 2 mil funcionários, lamentou a morte, desligou os dois seguranças e diz que faz “treinamento adequado” relativo à diversidade racial.

O Carrefour informou que tomará medidas para revisar seus processos. No sábado, as lojas do grupo abriram duas horas mais tarde para reforço das normas de atuação do grupo e de empresas terceirizadas de segurança. Na sexta-feira, em sua conta no Twitter, o CEO global disse que haverá uma revisão nas medidas de treinamento, acompanhada de um plano de ação “com o suporte de empresas externas, para garantir a independência”.

O Carrefour divulgou dois comunicados na sexta-feira lamentando o ocorrido, além de comprar um espaço em horário nobre na televisão no sábado à noite. Afirmou que doaria parte das vendas dos seus hipermercados, realizadas na sexta-feira - são 100 das 700 lojas - para ajudar a combater o racismo no país. O braço de varejo, que inclui os hipermercados, vendeu R$ 15 bilhões de janeiro a setembro (todo o grupo faturou R$ 48 bilhões).

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), classificou como “escandaloso” o episódio. “[Isso] só demonstra que a luta contra o racismo e contra a barbárie está longe de acabar. Racismo é crime!”, escreveu no Twitter. Mais cedo, sem se referir especificamente ao caso do Carrefour, o presidente da Corte, ministro Luiz Fux, disse durante um evento que o Brasil teve o período de escravidão mais longevo da história, sendo preciso “cotidianamente nos lembrarmos disso para promovermos a inclusão social, no trabalho, como resgate histórico.”

O Carrefour do Norte Shopping, maior shopping center da zona Norte do Rio de Janeiro, foi fechado ontem, domingo, devido a protestos pelo assassinato de Freitas.

Em Santo André (SP), Salvador e Goiânia também houve manifestações contra a rede francesa de supermercados neste domingo. Os protestos de domingo se seguem às manifestações que têm ocorrido, em várias cidades do país, desde sexta-feira.

Em nota de repúdio, a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial decidiu, na sexta-feira, que o Carrefour “seguirá desligado por tempo indeterminado das suas atividades” na entidade. “É criminoso um ambiente empresarial em que um cidadão entre para fazer uma compra e saia morto. E é [são] coniventes] todos aqueles que se omitiram e não tomaram as medidas para que essa morte fosse evitada. Inclusive os que se calam”, diz a Iniciativa Empresarial na página de abertura de seu site.

A Ambev cobrou, em sua conta oficial no Linkedin, que o Carrefour tome “medidas imediatas e efetivas” em relação ao assassinato de Freitas. “Temos o compromisso inegociável de promover a equidade racial em todo o nosso ecossistema, o que inclui os nossos parceiros, clientes e fornecedores e estamos prontos para trabalhar junto com eles para promover mudanças estruturais com urgência”, disse a companhia de bebidas, em nota. A Ambev informou estar “em luto pelo assassinato brutal de João Alberto Silveira Freitas”.

Neste domingo, o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro) pediu cassação do alvará de funcionamento da unidade do Carrefour onde Freitas morreu, na capital gaúcha, de acordo com o site de notícias “UOL”. Segundo a reportagem do “UOL”, o Idafro avalia que a rede de supermercados admitiu a existência de racismo a partir dos comunicados veiculados na televisão.

Em comunicado na noite de sábado, na televisão, o presidente do Carrefour no Brasil, Noel Prioux, disse que o que aconteceu foi “uma tragédia de dimensões incalculáveis” e que a questão está além de sua “compreensão como homem branco e privilegiado” que é. “Antes de tudo, meus sentimentos à família”, disse. Em seguida, o executivo pediu desculpas aos clientes, à sociedade e aos colaboradores.

“O que aconteceu não representa quem somos nem os nossos valores”, afirmou, no mesmo comunicado, o vice-presidente de Recursos Humanos do Carrefour no Brasil, João Senise. Ele citou que 57% dos funcionários da empresa são negras e negros e que mais de um terço dos gestores se declaram pretos ou pardos, mas ressaltou que é preciso ter mais ações concretas para promover a diversidade.

“Se uma crise como esta está acontecendo conosco é porque temos a responsabilidade de mudar isso na sociedade. A morte de João Alberto não pode passar em vão”, disse Prioux.

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‘Cotas raciais e ações afirmativas são necessárias’

Raquel Brandão

23/11/2020

 

 

Rachel Maia é uma das primeiras negras a ocupar a presidência de uma empresa no Brasil: reparação histórica

As cotas raciais e ações afirmativas ainda são as medidas mais efetivas no combate ao racismo na sociedade e nas empresas, defende Rachel Maia. Nascida na periferia de São Paulo, ela se tornou uma das primeiras negras a ocupar a presidência de uma empresa no país. “Essas iniciativas são transitórias, mas necessárias. É reparação histórica. Esperar só o reconhecimento, o esclarecimento ou ‘o ser justo’ para acontecer [a inclusão] vai demorar muito tempo.”

Antes de partir para plano solo à frente de sua consultoria RM Consulting, a executiva foi também presidente executiva e diretora nas multinacionais Cia’s Seven Eleven, farmacêutica Novartis, joalheria Tiffany&Co, Pandora e Lacoste Brasil. Em entrevista na Live do Valor, Rachel contou que vai assumir a direção executiva de uma empresa de maquiagem americana que está vindo para o mercado brasileiro com foco nas peles pretas e pardas. Ela deverá se ocupar das funções na empresa dois dias por semana, para equilibrar com as atividades de conselheira e consultora. Rachel integra, entre outros, o conselho consultivo da Unicef.

A executiva criou em 2018 o projeto “Capacita-me”, que busca ajudar jovens negros e em situação de vulnerabilidade na formação acadêmica e inserção no mercado de trabalho. “O momento que vivemos é de empoderamento. Temos que nos posicionar e mostrar a que viemos. E existe, sim, um sopro de esperança”, diz ela.

Para Rachel, as recentes conquistas como aumento de participação de mulheres e negros nas empresas e o crescimento no número de candidatos de grupos minoritários eleitos na última eleição são conquistas que precisam ser celebradas e enaltecidas.

Questionada, Rachel reiterou o interesse em se candidatar a um cargo político, o que havia sinalizado em entrevista ao suplemento “Eu&”, do Valor. “Existe um grande talvez, existe ainda uma aspiração. Mas acho que podemos também dar exemplos. A política não precisa ser constituída única e exclusivamente de corruptos, tem muita gente boa por aí.” Ela estabeleceu para si sete anos como período de preparação para entrar na política. “Nunca entrei numa batalha na minha vida sem preparação.”

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Senadores cobram explicações da varejista

Renan Truffi

23/11/2020

 

 

Senadores cobraram explicações do grupo Carrefour. Isso porque um homem negro foi espancado e morto por dois homens brancos, na noite da quinta-feira, 19, véspera do Dia da Consciência Negra, em um supermercado da rede francesa em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, respectivamente, chamaram a atenção para a necessidade de se combater o racismo no país.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, Paulo Paim (PT-RS), divulgou um comunicado no qual afirmou que não poupará esforços para que este crime seja punido. Ele também disse que convidou representantes do Carrefour para participar de live sobre racismo e darem explicações sobre o ocorrido. Por fim, Paim listou uma série de notícias com denúncias similares contra a rede de supermercados. “Na condição de presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal repudio veementemente mais um ato covarde e criminoso contra pessoa negra”, escreveu Paim.

Em sua avaliação de Paim, os episódios de racismo envolvendo o Carrefour são frequentes. “Com tristeza, recebo há meses notícias da imprensa sobre violência, intolerância e discriminação racial acontecidas nas dependências do Grupo Carrefour”, disse Paim.

 O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentou denúncia no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) contra a empresa. O parlamentar pede a "imprescindível atuação do Conselho no sentido de adotar, dentro de suas competências, as providências cabíveis para o enfrentamento a essa questão que claramente se mostra como uma afronta aos direitos humanos".

“Não é por acaso que, no Dia da Consciência Negra, o Brasil se choque com o assassinato brutal de uma pessoa negra, realidade cruel que reflete uma sociedade racista e um Estado que, omisso, estimula a barbárie. Nossa solidariedade à família da vítima. E condenação efetiva para os criminosos”, afirma Contarato.

O líder do PDT no Senado, Weverton Rocha (MA), disse que o crime contra um negro nesta data não é apenas uma questão de coincidência. “No Dia da Consciência Negra, o país amanhece com a notícia de mais um caso brutal de racismo. Não é uma questão de coincidência. É a rotina. É inadmissível! Até quando?”, questionou.

A presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), disse que Freitas é mais uma vítima do racismo no país. “Gostaria de celebrar a herança cultural e o avanço das ações afirmativas em prol da comunidade negra. No entanto, o pesar é mais forte. O João Alberto é mais uma vítima do RACISMO. Minha solidariedade à família, e a todas que também choram a perda provocada por esse mesmo gatilho”, escreveu.