Correio braziliense, n. 20968, 20/10/2020. Mundo, p. 10

 

O retorno da esquerda

Rodrigo Craveiro 

20/10/2020

 

 

O Movimento Ao Socialismo (MAS), do ex-presidente Evo Morales, e um dos principais expoentes da esquerda na América do Sul, está de volta ao poder. "A Bolívia recuperou a democracia. Quero afirmar, sobretudo aos bolivianos, que recuperamos as esperanças", declarou Luis Arce Catacora, afilhado político de Morales, de quem foi ministro da Economia e Finanças e conseguiu um boom econômico sem precedentes na história do país. O dia seguinte da vitória "contundente" de Arce sobre o centrista Carlos Mesa — por maioria absoluta e cerca de 20 pontos de vantagem, segundo as pesquisas de boca de urna — teve celebração e articulação para a formação de um governo de unidade nacional.

A missão do presidente eleito não será fácil. A Bolívia está mergulhada em profunda crise econômica e na polarização. De acordo com analistas, a relação com o Brasil, o maior vizinho do leste, deverá ser marcada pela tensão política, mas, também, pelos interesses comerciais: até o fechamento desta edição, o presidente Jair Bolsonaro mantinha o silêncio sobre a vitória da esquerda. Procurado pela reportagem, o Itamaraty não se pronunciou.

"Vamos governar para todos os bolivianos, vamos construir um governo de unidade nacional. (...) Vamos reconduzir nosso processo de mudança, sem ódio, defendendo e superando nossos erros", prometeu Arce. O triunfo do MAS nas urnas lança dúvidas sobre o futuro de Morales e sua eventual participação no governo. "Cedo ou tarde voltaremos à Bolívia, isso não está em discussão. Meu grande desejo é voltar à Bolívia e à minha região (Chapare). É questão de tempo", anunciou o ex-presidente, hoje exilado na Argentina, depois de perder o apoio dos militares e apresentar a renúncia, em 10 de novembro de 2019.

Doutor em ciência política e professor da Universidad Católica Boliviana San Pablo (em La Paz), Marcelo Arequipa explicou que a eleição de Arce mostrou que, pela primeira vez, os cidadãos votaram por um partido, não por uma liderança concreta. "Isso mostra que o 'masismo' é uma corrente política muito forte e histórica. O triunfo de Arce foi a vitória de um projeto político que teve início em 2009, cuja proposta era a formação de um Estado plurinacional", disse ao Correio. Ele acredita que a distância será importante nas relações políticas com o Brasil. "Existe uma diferença ideológica importante, mas Arce não adota um discurso fundamentalista, como o de Evo Morales. No fim das contas, as relações entre os dois vizinhos seguirão no campo da cooperação e e do comércio", previu. "À medida que o Brasil provavelmente apoiar a ideia de adesão da Bolívia ao Mercosul, como membro pleno, isso ajudará bastante."

Maria Teresa Zegada, socióloga, cientista política e professora da Universidad Mayor de San Simón (em Cochabamba), reconheceu ao Correio que houve uma relação de "certa tensão" entre Morales e Bolsonaro. "Imagino que Arce manterá uma linha de política exterior parecida com que a Morales teve em suas gestões. Não há clareza em relação ao continuísmo total da política ou se Arce seguirá linhas distintas", alertou.

A analista admitiu que Arce buscou cobrar certa autonomia em relação a Evo. "O que está por trás da vitória de Arce é a possibilidade de setores sociais do MAS, até então distanciados de Morales, cobrarem força política no país", avaliou. Para Zegada, o MAS foi o único partido com carga forte de identificação com os indígenas, com as mudanças e com os setores populares. "O retorno do MAS é um pouco a presença desses setores no Estado."

Cautela

Por sua vez, Jorge Dulon, cientista político radicado em La Paz e professor de várias universidades bolivianas, prevê uma relação "normal" entre Arce e Bolsonaro, sem provocações por parte do Palacio Quemado, sede do governo da Bolívia. "Arce será cauteloso, levando em conta que o Brasil é uma potência ragional e uma nação estratégica, em termos de negócios, sobretudo a venda de gás. Ele precisará comportar-se de nodo adequado para ter as melhores relações com o Brasil", disse à reportagem.

Além de vários governos sul-americanos, os Estados Unidos parabenizaram Arce pela vitória. "O presidente (Donald Trump) e os EUA esperam trabalhar com o governo eleito boliviano nos interesses compartilhados dos nossos cidadãos", declarou Michael Kozak, chefe da diplomacia americana para a América Latina.