Correio braziliense, n. 20999, 21/11/2020. Brasil, p. 4/5

 

João Alberto, negro espancado até a morte

Bruna Lima 

Carinne Souza 

21/11/2020

 

 

O Dia da Consciência Negra foi marcado pela dor da luta diária, pelas insistentes perdas. Ontem, João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, representou a triste realidade da população preta no Brasil. O assassinato dele, por dois homens brancos, numa unidade do Carrefour, em Porto Alegre, causou comoção e revolta no país. Beto, como era conhecido, foi brutalmente espancado, na quinta-feira à noite. Um dos agressores o imobilizou apertando o joelho contra as costas dele. O laudo médico aponta morte por asfixia. Os dois estão presos.

Os suspeitos do assassinato são Magno Braz Borges, 30, e o policial militar temporário Giovani Gaspar da Silva, 24, que faziam a segurança do estabelecimento. “Agredido bruscamente por facínoras. Chamar aquilo de segurança é desmerecer os verdadeiros seguranças”, lamentou o pai da vítima, João Batista Rodrigues Freitas, 65. “As únicas coisas que podemos esperar é por Deus e pela Justiça. Não há mais o que fazer. Meu filho não vai mais voltar”, afirmou ele, classificando o crime como tendo motivação racista.

As investigações preliminares apontam que João Alberto se desentendeu com uma funcionária, e a segurança foi chamada.  O soldador foi levado para a entrada da loja e teria dado um soco no PM.  Passou, então, a ser espancado.

Ao sogro, a esposa de Beto, Milena Borges Alves, 43, relatou o episódio. “Ela me contou que o segurança apertou o meu filho contra o chão, e ele já estava roxo. Fazia sinal com a mão para ela fazer alguma coisa, tirar o cara de cima, mas um outro segurança empurrou a Milena”, contou João Batista. Em entrevista à Rádio Gaúcha, Milena reiterou a versão.

Nas imagens, é possível ver pessoas gritando para que as agressões ao soldador cessem. “Vamos chamar a Brigada (Militar)”, disse alguém, ao fundo. Em uma das gravações, o homem é derrubado e atingido por, ao menos, 12 socos. “Tentamos intervir, mas não conseguimos. A gente gritava ‘tão matando o cara’, mas continuaram até ele parar de respirar. Fizeram a imobilização com o joelho no pescoço do Beto, tipo como foi com o americano (George Floyd, morto por policiais, neste ano, nos Estados Unidos)”, relatou um vizinho da vítima, Paulão Paquetá, que estava no local.

João Alberto deixa quatro filhos e uma enteada. Segundo a polícia, ele tinha antecedentes criminais por violência doméstica, ameaça e porte ilegal de arma. 

Investigação

Responsável pela apuração do homicídio, a delegada Roberta Bertoldo declarou que o caso não é, inicialmente, tratado como racismo. “Até o presente momento, não se vislumbra que a cor de pele desse indivíduo tenha sido, de alguma forma, a causa ou tenha atuado decisivamente para que se desenvolvesse essa ação”, disse.

Os homens foram detidos em flagrante, e a polícia ainda vai apurar a responsabilidade de outros servidores do próprio supermercado “que estavam no local, presenciaram a cena e deixaram que aquela situação se desenvolvesse”, afirmou Bertoldo. O caso está sendo tratado como homicídio triplamente qualificado.

Em nota, a Brigada Militar afirmou que prendeu os envolvidos, “inclusive o PM temporário, cuja conduta fora do horário de trabalho será avaliada com todos os rigores da lei”. Já o Grupo Vector, empresa de segurança responsável pelos funcionários envolvidos, lamentou o ocorrido e disse não tolerar “nenhum tipo de violência, especialmente as decorrentes de intolerância e discriminação”. Ressaltou que os colaboradores recebem treinamento e que iniciou o procedimento de apuração interna.

O Carrefour manifestou-se por nota. Considerou o episódio “inexplicável”, classificou a morte como “brutal” e disse que “adotará as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos”. Segundo o comunicado, o contrato com a empresa responsável pelos seguranças foi interrompido, e o funcionário que estava no comando da loja durante o crime, desligado. O Carrefour afirmou, ainda, que doará o lucro de todas as lojas do Brasil, obtido ontem, a entidades que combatem o racismo.

O posicionamento, no entanto, foi insuficiente para conter a onda de críticas e protestos contra a rede de supermercados. Entre os assuntos mais comentados nas redes sociais estava a organização de um boicote contra o grupo. “Não compre. Não frequente. Justiça a João Alberto”, dizia a postagem que circulou amplamente ontem.

A revolta não ficou restrita ao caso. Isso porque não é a primeira vez que o nome da empresa é associado a episódios de agressões e atos considerados desumanos. Diferentemente da interrupção das atividades em solidariedade à morte de João Alberto, o mesmo não ocorreu quando um representante de vendas morreu numa loja Carrefour, no Recife.

Manoel Moisés Cavalcante, 53, teve um infarto no local. O corpo foi escondido por guarda-sóis, tapumes, papelão e engradados de cerveja. O estabelecimento continuou funcionando normalmente, com circulação de clientes. Em dezembro de 2018, uma cadela de rua foi morta a pauladas por funcionário do Carrefour de Osasco. Fotos do animal sangrando viralizaram nas redes e geraram revolta nos internautas e de organizações protetoras de animais.

* Estagiária sob a supervisão de Cida Barbosa

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Protestos em Brasília e outras cidades do País 

Darcianne Diogo 

21/11/2020

 

 

No Distrito Federal, cerca de 100 pessoas se concentraram em frente à Praça Zumbi dos Palmares, no Conic, ontem à noite, em manifestação contra o assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas, numa loja do Carrefour, em Porto Alegre. Com gritos de ordem, como "Marielle perguntou, eu também vou perguntar: quantos mais têm que morrer para essa guerra acabar?" e "vidas negras importam", o grupo seguiu em direção ao Carrefour Bairro, na 402 Sul.

O protesto pacífico durou pouco mais de uma hora. Com a chegada dos manifestantes, o Carrefour Bairro fechou as portas, e funcionários do estabelecimento foram liberados. Policiais militares formaram uma barreira de proteção para evitar que o público invadisse o supermercado.

Margareth Santos, 47 anos, é integrante da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno e esteve presente no ato. Ela relatou que ficou em choque quando soube do crime em Porto Alegre. "As vidas negras importam e, depois dessa situação, o racismo está desmascarado. Estão nos matando, humilhando e deixando nosso povo doente. O que deixa doentio é o incômodo com nossa cor de pele. Nós incomodamos", afirmou.

O estudante de ciências políticas Daniel da Silva, 21, acredita que manifestações reforçam a luta contra a violência ao negro. "O racismo é institucionalizado e, a cada 23 minutos, um negro morre. Estamos em um país inseguro. Nossas crianças que virão vão sofrer com toda essa desigualdade. Este momento é muito importante para reforçar nossa luta coletiva", pregou.

Em outras cidades pelo país também houve protestos. Milhares manifestaram-se em frente ao mesmo supermercado onde ocorreu o assassinato, em Porto Alegre. Cruzes e flores foram colocadas em homenagem a João Alberto. Lideranças negras e políticas se revezavam no caminhão de som.

Entre 20 e 30 pessoas conseguiram entrar no estacionamento do hipermercado e alguns foram até a parte térrea da unidade. Foi possível verificar quebra-quebra no local e cancelas do estacionamento vandalizadas. O vidro da escada rolante foi destruído.

Uma minoria começou a atirar pedra e fogos de artifício. O Batalhão de Choque respondeu com bomba de gás. Depois disso, alguns outros portões que dão acesso ao hipermercado foram quebrados. Papéis, cartazes, faixas e até plantas secas foram incendiadas. A unidade teve a palavra "assassinos" pichada na fachada. Rojões também foram arremessados contra o mercado.

Em São Paulo, manifestantes concentraram-se no vão do Masp, na região central. Depois, um grupo seguiu em direção a uma unidade do Carrefour, na Rua Pamplona. Uma pequena parte deles pegou pedras dos vasos do estacionamento e arremessou contra os vidros do supermercado. A ação durou pouco mais de 10 minutos, e clientes ficaram assustados. Lideranças da manifestação chegaram a pedir que não houvesse quebra-quebra ou invasão, mas os pedidos não foram atendidos por esse pequeno grupo.

No Rio, dezenas de manifestantes fizeram um protesto no supermercado Carrefour da Barra da Tijuca, na Zona Oeste. Aos gritos de "Assassino, Carrefour", eles chegaram a entrar no supermercado, pedindo para que a unidade fechasse.

Em Belo Horizonte, o ato foi organizado por entidades que representam a população negra, como o Núcleo Rosa Egipsíaca Negros, Negras e Indígenas. Em Fortaleza, há relatos de uso de spray de pimenta pelos policiais, e três manifestantes foram detidos. (Com Agência Estado)

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Violência sentida na pele 

Edis Henrique Peres

Natália Bosco 

21/11/2020

 

 

A morte de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, escancarou mais uma vez o problema da violência contra os negros no Brasil. O assassinato, que ocorreu em um supermercado da rede Carrefour, em Porto Alegre, é um exemplo marcante dos dados expostos pelo Atlas da Violência de 2020, publicado em agosto deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O documento mostra o crescimento no número de assassinatos de pessoas negras no Brasil e destaca que, em 2018, 75% das vítimas dos 57.956 homicídios registrados no país eram pessoas negras.

O problema sentido na pele dos brasileiros e das famílias das vítimas é confirmado por outras análises. Publicado este ano, um relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança mostrou que o negro é a principal vítima da violência no país. Segundo o estudo, pretos e pardos são 75% dos mortos pela polícia. Outro estudo que apontou violência contra negros foi o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Divulgado em agosto deste ano, o levantamento revelou que do total de 4.971 crianças e adolescentes mortos em 2019, 75% eram negros.

"Estou de luto. Diante de uma situação como essa, todos nos sentimos agredidos; assassinados", disse o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente. Ele lamentou o episódio ocorrido na rede de supermercados Carrefour na noite de quinta-feira, mas ressalta que esse não é um caso isolado. "Não é o primeiro negro que morre".

O reitor questiona as autoridades que sabem que o racismo existe e mesmo assim não fazem nada. "Fico preocupado com aqueles que sabem que o racismo existe e não se levantam para fazer nada. Queria saber, agora, onde está o presidente, onde estão o Ministério Público Federal, os Direitos Humanos, as empresas que regulam o serviço de segurança?"

Para José Vicente, o Carrefour deve ser responsabilizado, pois não houve um gerente, ou nenhum outro indivíduo dentro do estabelecimento para interromper a série de agressões sofridas pela vítima. "É preciso que haja protocolos para as abordagens dos seguranças e policiais. É necessário que sejam exigidos cursos para esse tipo de serviço, inclusive abordando a questão do negro", ressalta.

A morte de João Alberto Silveira Freitas, que está sob investigação para averiguar se houve racismo, é apenas um dos casos que ocorrem no Brasil. Segundo o Atlas da Violência 2020, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram assassinados. E a violência, muitas vezes, se esconde nos pequenos detalhes.

Representatividade
A estudante de pedagogia Thaís Duarte Oliveira, 32 anos, moradora de Luziânia (GO), conta que já sofreu racismo na infância e continua a sofrer episódios desse tipo de violência. "Eu sou filha de uma mãe muito branca e de um pai negro. E ouvia constamente que era adotada", explica.

Por esse motivo, Thaís decidiu fazer o tema do seu trabalho de conclusão de curso voltado para a representatividade. A estudante aborda a falta de presença de personagens e autores negros na literatura infantil. "Quando eu era criança, eu lia muito, mas não me sentia representada. Não havia nenhum personagem negro, nenhum escritor negro. O mais próximo que havia era alguns artistas na televisão", critica.

Foi só depois de abandonar a escola na adolescência e concluir o ensino médio por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que ela descobriu o empoderamento da negritude. "Para fazer hoje meu trabalho de conclusão, eu precisei adquirir os livros, porque não encontrei nas bibliotecas das escolas e nem na biblioteca nacional livros infantis com negros. Encontrei pouquíssimas obras de autores negros, mas somente na biblioteca municipal. Ainda assim, o número é pequeno", ressalta.

Questionada sobre qual seria a solução para um país mais inclusivo, Thaís é taxativa: "Educação. Eu acredito muito na educação. E as escolas precisam corrigir seus erros. Não é apenas falar do negro em 20 de novembro, no dia da Consciência Negra. Os negros estão nas intituições todos os dias, estão nas salas de aulas todos os dias, em seus trabalhos, todos os dias. E precisam ser respeitados sempre".

*Estagiários sob a supervisão de Andreia Castro

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Pressão pública e do Congresso 

Luiz Calcagno 

21/11/2020

 

 

A última edição do Atlas da Violência aponta que os casos de homicídios de pessoas negras subiram 11,5% em uma década, já o percentual entre não negros teve queda de 12,9%. Ainda assim, um relatório da Câmara apontou que o Executivo federal suspendeu, em 2019, o programa de prevenção de mortes dessa parcela da população batizado de Juventude Viva. O levantamento feito a pedido da Comissão de Direitos Humanos e Minorias revela que essa é apenas uma das políticas de combate ao racismo que foram suspensas ou não tiveram continuidade no governo Bolsonaro.

O estudo, que foi feito com base em informações de que o governo enviou à Câmara, mostra que o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens, previsto por lei, nunca foi implementado. O Decreto nº 9.489/2018, que obriga o Ministério da Justiça a "instituir mecanismos de registro, acompanhamento e avaliação, em âmbito nacional, dos órgãos de correição", também não foi posto em prática.

O relatório também aponta corte de recursos. No caso de políticas públicas para quilombolas, os valores passaram de R$ 26 milhões em 2014, para pouco mais de R$ 5 milhões, no ano passado.

O orçamento da Fundação Palmares, agora presidida por Sérgio Camargo, um negacionista do racismo, caiu de R$ 6,5 milhões, em 2012, para 837,7 mil, no ano passado. E os recursos da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, por sua vez, passaram de R$ 5 milhões, em 2012, para, aproximadamente, R$ 800 mil. Presidente da Comissão de Direitos Humanos, o deputado Helder Salomão (PT-ES) argumenta que a única forma de obrigar o governo a mudar a atuação é a partir da pressão pública e do Congresso.

Críticas
Para o deputado, os dados dão respaldo aos argumentos para pressionar o Executivo. Ele afirmou que a comissão também fez várias denúncias contra Jair Bolsonaro e o governo em órgãos internacionais.

"O governo está destruindo o que foi acumulado por décadas, especialmente depois da Constituição Federal. E quem sofre é a população mais vulnerável, preta, pobre, da periferia, em especial a juventude vítima da letalidade policial e do racismo. E o governo, em vez de fortalecer, tirou do orçamento ou reduziu drasticamente os recursos para políticas de enfrentamento à violência e combate ao racismo. O relatório é uma denúncia séria ao Brasil e ao mundo. É preciso uma pressão da sociedade".

Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Eduardo Tavares também critica a omissão do poder público e ressalta os casos de violência cotidiana contra os negros.

"Nas últimas três semanas, vimos vários eventos de racismo acontecendo, e na véspera do dia da Consciência Negra, o caso do senhor morto no Rio Grande do Sul", alertou.
"No Amapá, vimos a deputada Cristina Almeida, negra, que sofreu ataques. A primeira vereadora negra de Joinville (SC) foi ameaçada de morte. Se o governo nega o racismo, dá o recado que essas políticas não serão enfrentadas", destacou o jurista.

Justificativa
Procurado, o Ministério da Justiça informou que iniciou, em 2019, "a construção do Programa Nacional de Enfrentamento à Criminalidade Violenta, com ênfase em homicídios de jovens".

Disse que se utiliza de levantamentos do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea), para "lançar um programa de enfrentamento à criminalidade violenta, e que, com isso, pretende-se alcançar, principalmente, as cidades com maior índice de homicídios no país".

A mensagem não fala diretamente sobre enfrentamento ao racismo. O Ministério da Mulher e o Ministério da Economia não responderam à reportagem até o fechamento desta edição.