Título: Papa quer reforçar os laços com o islã
Autor: Walker, Gabriela
Fonte: Correio Braziliense, 23/03/2013, Mundo, p. 21

Junto a representantes de 180 nações, Francisco revela a intenção de se aproximar de outras religiões. Hoje, o pontífice tem encontro inédito com o antecessor, Bento XVI

O papa Francisco se reuniu ontem com diplomatas de 180 países creditados na Santa Sé e reforçou a intenção de aproximar a Igreja Católica das outras religiões, especialmente do islã. “Não é possível estabelecer laços verdadeiros com Deus ignorando os outros”, declarou o pontífice, que não se esqueceu dos ateus e dos agnósticos e conclamou todos ao diálogo. Sem falar diretamente sobre a guerra, Francisco lembrou que os povos devem estar dispostos e mobilizados para buscar juntos a paz e pediu união na luta contra a pobreza. “Quantas pessoas pobres que ainda existem no mundo e quão grande é o sofrimento que elas têm de suportar!”, lamentou o pontífice. Representantes do Afeganistão e da Arábia Saudita, nações com as quais o Vaticano não mantém relações diplomáticas, também estiveram presentes.

Ao apontar a pobreza de espírito como um dos principais desafios da atualidade, Francisco afirmou que os países mais ricos são “particularmente afetados” pelo problema e citou Bento XVI. “Isso é o que o meu muito amado antecessor chamou de ‘ditadura do relativismo’, o que faz de cada um o seu próprio critério e coloca em risco a coexistência dos povos”, explicou.

A tentativa de aproximar as religiões é vista com bons olhos por vários estudiosos, que citam o Concílio Vaticano II, concluído em 1965, como o documento oficial que insta à reconstrução de pontes entres as doutrinas cristãs e entre a Igreja Católica e diferentes religiões. “Entendo a iniciativa como uma tentativa de neutralizar guerras e conflitos. Um maior entendimento entre os religiosos é fundamental para um futuro de paz”, avalia Eduardo Gusmão, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Para Rodrigo Coppe, professor de ciências da religião da PUC-MG, a Igreja tomou uma posição de liderança, ao conclamar os líderes religiosos ao diálogo. No entanto, esse processo esbarra em questões de identidade religiosa, o que deixa os mais conservadores receosos. “Parece-me que Francisco não tem tanto medo, ele quer conversar com todos, inclusive com ateus”, ressalta o professor.

No discurso para os diplomatas, Jorge Mario Bergoglio — nome de batismo do papa Francisco — quebrou mais um costume e falou em italiano, em vez de francês, o idioma tradicionalmente usado em discussões diplomáticas. Francisco lembrou que o pontífice é aquele “que constrói pontes com Deus e entre os homens” e reforçou a ideia de que seu nome foi escolhido por trazer uma mensagem de austeridade e de amor aos pobres. “O nome nos ensina o respeito profundo por toda criação e proteção de nosso meio ambiente, que, muitas vezes, em vez de usá-lo para o bem, nós o exploramos avidamente, um em detrimento do outro”, afirmou.

Há 23 dias afastado da função de líder da Igreja, o papa emérito Bento XVI recebe Francisco hoje, ao meio-dia, em Castel Gandolfo, residência de verão do Vaticano. Apesar de já terem conversado pelo telefone algumas vezes desde a escolha de Bergoglio, será a primeira vez que se encontrarão. De acordo com o jornal La Stampa, Bento XVI escreveu, à mão, um relatório secreto de 300 páginas dedicado apenas ao seu sucessor. Analistas especulam que o papa emérito preferiu elaborar seu próprio relatório, que em alguns pontos não deve coincidir com o documento sobre o escândalo VatiLeaks, escrito por três cardeais sobre denúncias de irregularidades dentro da Igreja. “Eles terão muito o que conversar, já que muito precisa ser discutido para limpar a Igreja”, avalia Coppe.

Entre os jardineiros da Santa Sé Por um momento, o papa Francisco permaneceu sentado em uma das últimas fileiras da Capela da Casa Santa Marta, em meio a jardineiros e faxineiros do Vaticano. Pouco antes, ele havia celebrado uma missa em intenção desses funcionários da Santa Sé, como tem feito todas as manhãs. Durante as cerimônias, Francisco tem o costume de se deslocar até o fundo da capela, buscando momentos de introspecção e de oração. “Quando temos um coração de pedra, ocorre que nós pegamos pedras verdadeiras e apedrejamos Jesus Cristo, na pessoa de nossos irmãos e irmãs, especialmente os mais fracos deles”, declarou o pontífice em sua homilia, ao citar o Evangelho de João que relata como os judeus queriam apedrejar Cristo.

“Graças a Bergoglio, eu estou vivo” O padre espanhol José Caravias afirmou ontem que o papa Francisco salvou sua vida quando ele foi ameaçado pela ditadura militar. “Bergoglio me disse: ‘Tenho notícias de que a Triple A decretou sua morte e a de Francisco Jalics. Eu considerei que não valia a pena você dar uma de herói’”, contou o padre, em entrevista à Associated Press, referindo-se ao esquadrão da morte Aliança Anticomunista Argentina. De acordo com Caravias, que atualmente mora em Assunção, ambos foram avisados por Bergoglio do risco que corriam. Ao contrário do húngaro Jalics, Caravias preferiu fugir. O padre relatou que, quando Jalics e o argentino Orlando Yorio foram presos e torturados, Bergoglio interveio pela liberação dos dois. “Se não tivesse ido em busca dele, o teriam matado”, avaliou.