Correio braziliense, n. 20970, 22/10/2020. Política, p. 4

 

MS: sem intenção para as 'vacinas chinesas'

Augusto Fernandes 

Bruna Lima 

22/10/2020

 

 

O secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, contradisse o chefe, o ministro Eduardo Pazuello, e afirmou ontem que o governo não pretende mais adquirir a vacina desenvolvida pela farmacêutica Sinovac e o Instituto Butantan. Em contrapartida, o diretor-presidente da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), almirante Antônio Barra Torres, disse, também ontem, que "pouco importa de onde vem a vacina ou qual é o seu país de origem". E salientou que a instituição está comprometida em atestar a qualidade, a segurança e a eficácia dos imunizantes que estão sendo testados no Brasil.

Entre as iniciativas previstas pelo ministério para incorporar ao Plano Nacional de Imunização (PNI), até o momento, estão a adesão na iniciativa Covax Facility, com a opção de compra de vacinas, além do contrato de encomenda tecnológica da vacina da AztraZeneca com a Universidade de Oxford. Na última terça-feira, a pasta confirmou a adesão da CoronaVac no rol de imunizantes, mas voltou atrás, após desencontro com afirmações do presidente Jair Bolsonaro.

Mas, em vez de reconhecer a mudança de postura, Elcio disse que houve uma "interpretação equivocada" gerada durante a reunião entre a pasta e governadores. O acordo de intenção — documento interno assinado na última segunda-feira, mas divulgado ontem depois da repercussão — reafirma que a previsão da pasta era de adquirir 46 milhões de doses da CoronaVac.

Incorporação

Além disso, texto divulgado no próprio site do ministério, e retirado depois, confirma a intenção de incorporar a CoronaVac ao PNI. "A ação é mais um passo na estratégia de ampla oferta de vacinação aos brasileiros. Somadas, as três iniciativas — AstraZeneca, Covax e Butantan-Sinovac — representam 186 milhões de doses, a serem disponibilizadas ainda no primeiro semestre de 2021, já a partir de janeiro", chegou a veicular a pasta.

Tanto o documento quanto o texto no site do ministério vão de encontro ao recuo do governo federal, após a intervenção de Bolsonaro. No pronunciamento de ontem, Élcio garantiu que "não há intenção de compra de vacinas chinesas": "Em momento nenhum, a vacina foi aprovada pela pasta, pois qualquer vacina depende de análise técnica e aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec)", esclareceu.

O secretário-executivo acrescentou que não houve compromisso com o governo do estado de São Paulo ou com o governador João Doria para aquisição da CoronaVac. "Tratou-se de um protocolo de intenção entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantan, sem caráter vinculante", disse.

Ele ainda enfatizou que, "no que depender desta pasta, (a imunização contra covid) não será obrigatória", em alinhamento com a determinação presidencial. Questionado pelo Correio se a mensagem passada pelo governo federal pode fortalecer movimentos antivacinas e dificultar a criação de um bloqueio contra a doença, o ministério justificou que "oferecerá a vacinação contra a covid-19 de forma segura –– conforme já faz há décadas com todas as vacinas que compõem o Programa Nacional de Imunizações —, mas não recomendará sua obrigatoriedade aos gestores locais, respeitando o direito individual de cada brasileiro".

Sem ideologia

Já na Anvisa, após se reunir com Doria, o diretor-presidente da agência, Antônio Barra Torres, frisou que a instituição quer se manter "fora da discussão política ou de qualquer outra discussão que não seja o norte técnico-científico para que, o quanto antes, possamos entregar respostas vacinais ao povo brasileiro". Ele comentou que a Anvisa não participa de nenhuma compra feita pelo governo federal — que é de competência exclusiva do Ministério da Saúde ––, mas deixou claro que não vai rejeitar o pedido de registro de uma vacina só porque o imunizante é rejeitado por Bolsonaro e seus apoiadores.

"Para nós, pouco importa de onde vem a vacina ou qual é o seu país de origem. Nosso dever constitucional é fornecer as respostas de se esses produtos têm ou não têm qualidade, segurança e eficácia, se induzem à imunidade ou não, se essa imunidade induzida é específica ao coronavírus, se ela vai combater o coronavírus", explicou Torres.

A diretora da Anvisa Alessandra Bastos acompanhou. "O nosso critério não é de onde vem, mas é se há qualidade e onde é fabricado. Não é competência nossa fazer julgamento", garantiu.

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Imunização pode ser garantida pela Justiça

Jorge Vasconcellos 

22/10/2020

 

 

Governadores e parlamentares ameaçam recorrer ao Judiciário para garantir a vacinação contra a covid-19, com qualquer vacina que esteja disponível, apesar de o presidente Jair Bolsonaro afirmar que não permitirá que a vacina chinesa CoronaVac seja incluída no Programa Nacional de Imunizações (PNI), mesmo se for aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O alerta foi dado pelo governador Flávio Dino, do Maranhão, de que não haverá restrições para garantir o acesso da população ao medicamento.

"Não queremos uma nova guerra na Federação. Mas, com certeza, os governadores irão ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário para garantir o acesso da população a todas as vacinas que forem eficazes e seguras", tuitou.

O governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), reforçou a posição de Dino. "A influência de qualquer ideologia em temas fundamentais, como a saúde, só prejudica a população. Defendemos que todas as vacinas consideradas seguras, avalizadas pelas autoridades, sejam disponibilizadas ao povo brasileiro. É preciso dar este passo na superação da covid-19", salientou.

Também o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, criticou a politização da discussão sobre a vacina. "Salvar vidas e libertar os brasileiros do coronavírus são objetivos que devem unir todos nós. Adquirir as vacinas, que primeiro estiverem a disposição, deve ser a meta primordial. Nesse contexto, não há espaço para discussão sobre assuntos eleitorais ou ideológicos", criticou.

Insensatez

Outro a criticar o gesto de Bolsonaro foi o governador da Bahia, Rui Costa (PT). "General e ministro da Saúde tomou medida sensata de garantir acesso à vacina de qualquer país para salvar vidas. Estamos em guerra contra a covid, que já matou mais de 150 mil no Brasil. O presidente não pode desmoralizá-lo e desautorizá-lo nesta luta. Minha total solidariedade ao ministro", disse.

Já Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, defendeu que a questão da vacina seja discutida apenas do ponto de vista técnico. "A definição sobre a inclusão de vacinas contra a covid-19 no Programa Nacional de Imunização deve ser feita com análise eminentemente técnica (e não política!), observando viabilidade, segurança e agilidade para atender a população", tuitou.

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Nas entrelinhas: a teoria do dano e a vacina 

Luiz Carlos Azedo 

22/10/2020

 

 

A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.

Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.

Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião pública para convencer as pessoas a não tomarem certas atitudes, mas condenava a repressão direta a ações individuais que afetam apenas a própria vida. É possível desenhar a sua “teoria do dano”: todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos eventualmente causados por um indivíduo a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias sobre a liberdade individual continuam atuais.

Rebanho

No Brasil, a “teoria do dano” foi introduzida na nossa jurisprudência no Código Civil de 1916, que estabeleceu um nexo causal entre o dano e o fato que o produziu, e foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de 2002. Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado pode ser processado pelos prejuízos causados aos cidadãos. Por ironia, em tempos de pandemia e de “imunização de rebanho”, ou seja, da necessidade de vacinação em massa para combater o novo coronavírus, um caso analisado pelo jurista Robert Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil francês de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os bois do comprador, impedindo-o de cultivar suas terras. Ciente do vício oculto, o vendedor responde pelo perecimento da vaca como também pela morte do restante do rebanho do comprador.

No caso da vacina contra o coronavírus, que na sua opinião não deve ser obrigatória, o presidente Jair Bolsonaro não leva em conta o dano que pode ser causado voluntariamente por uma pessoa infectada, ao contaminar as outras, por se recusar a tomar a vacina. O governo também pode ser responsabilizado por não utilizar uma vacina disponível. Apesar disso, cancelou o acordo feito entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, do governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, que serão produzidas por aquela consagrada instituição científica, em parceria com o laboratório chinês, com previsão para estar pronta para imunização já em dezembro.

Anulou o protocolo assinado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, com todos os governadores, para aquisição e aplicação da vacina, com o argumento absurdo de que o “povo brasileiro não será cobaia” da “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo.