Correio braziliense, n. 20973, 25/10/2020. Brasil, p. 6/7

 

É possível parar o carnaval?

Fernando Jordão 

Hellen Leie 

Adriana Izel 

Luiz Philipe Tassy 

25/10/2020

 

 

O Brasil tem chances reais de, em 2021, viver algo inédito. Desde que os festejos carnavalescos começaram por aqui — o que, segundo pesquisadores, ocorreu à época da chegada dos portugueses, no século 16 —, eles nunca deixaram de ser celebrados no período que antecede a Quaresma, em fevereiro ou no começo de março. Porém, devido à pandemia de covid-19, o adiamento ou cancelamento da festa é debatido pelos governos das maiores cidades do país. Enquanto São Paulo adiou para data indefinida e Brasília optou por não realizar a folia, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Olinda ainda discutem como agir.

Não se trata de uma decisão simples. E não devido ao prejuízo econômico e cultural que ela pode representar, afinal, a saúde pública deve ser priorizada. Mas, sim, porque a estratégia pode não dar certo. É o que alerta a história. Afinal, as duas tentativas oficiais de adiar a festa de Momo no Brasil fracassaram. A primeira ocorreu também por questões sanitárias, em 1892, quando o país lidava com uma série de doenças, como a febre-amarela entre elas. A segunda se deu em 1912, devido à morte do Barão do Rio Branco, então ministro do Exterior e tido como herói nacional.

No fim do século 19, buscando evitar a aglomeração de pessoas no calor de fevereiro, os governantes decidiram transferir os festejos para junho, no inverno. "Adiaram, por decreto, para o último fim de semana de junho, que inclusive coincide com as festas de São João. O que aconteceu? Chegou o carnaval, foi todo mundo para a rua, mesmo que houvesse o decreto. A Prefeitura (do Rio de Janeiro, capital federal à época) até tentou fazer controles policiais, fechando as lojas que vendiam produtos temáticos, proibindo salões onde ocorriam os bailes de abrirem, mas nada disso adiantou", detalha Leonardo Bruno, pesquisador-orientador do Observatório de Carnaval do Museu Nacional.

Na outra tentativa, o motivo era o luto pela morte do Barão do Rio Branco, que aconteceu a uma semana da festa. "O povo sofreu muito e decretou-se o adiamento para dois meses depois, em abril. Em princípio, parecia algo sensato, mas, quando chegou o sábado de carnaval, o povo foi para a rua afogar as mágoas e acabou o luto. Efetivamente, aconteceram dois eventos. Os registros históricos trazem até uma marchinha que o povo cantava na rua dizendo que, se o barão morreu e a gente teve duas festas, imagina quando morrer o general", conta Bruno.

"Nos dois casos, não adiantou nada. A folia aconteceu na data normal e na data transferida. Foram duas transferências tentadas que não tiveram sucesso. Ou foram um grande sucesso e as pessoas tiveram dois carnavais", brinca Felipe Ferreira, professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e criador do Centro de Referência do Carnaval.

Guerras e gripe espanhola
As duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) também não impediram a realização do carnaval no Brasil, a despeito de tentativas das autoridades. De acordo com o professor Paulo Miguez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o país teve participação pequena no primeiro conflito, enviando poucos militares à Europa apenas no fim dele, ou seja, após a folia de 1918. À época, chegou-se a discutir a realização dos festejos, mas eles ocorreram normalmente. Na Segunda Guerra, contudo, o Brasil teve maior participação. "Oficialmente, tudo foi feito para impedir. Recursos públicos foram interditados, mas a festa aconteceu mesmo com os pracinhas na Itália. As muitas proibições acabaram dribladas", explica.

Além do fim da Primeira Guerra, 1918 ficou marcado pela gripe espanhola, até hoje a mais violenta pandemia da história, que deixou de 20 a 40 milhões de mortos — mais até do que a Primeira Guerra, que fez 15 milhões de vítimas. No Brasil, segundo o Atlas Histórico da Fundação Getulio Vargas (FGV), foram cerca de 35 mil óbitos. Até mesmo o presidente eleito, Rodrigues Alves, morreu vítima da doença antes de tomar posse. É fácil presumir que, diante da tragédia, o carnaval não fosse realizado. Mas aconteceu exatamente o contrário.

A festa de 1919 é tida, até hoje, como a maior de todos os tempos. "A gripe chegou, arrasou, matou milhares, mas em determinado momento ela foi embora, por volta de outubro, novembro. Isso fez com que o evento do ano seguinte, segundo todos os relatos, tenha sido o mais louco de todos os tempos, dos mais irreverentes que se tem notícia. O povo foi para a rua com a necessidade de celebrar o fim daquela coisa terrível. Além disso, depois de uma tragédia como essas, havia o pensamento de que poderia ser o último dos carnavais", narra Miguez.

As proporções da maior folia de todos os tempos podem ser tomadas com base nos relatos do escritor Nelson Rodrigues. Apesar de ter apenas 6 anos, ele gravou na memória as cenas daquele ano e, posteriormente, as descreveu em um artigo para o jornal Correio da Manhã — compilado no livro Memórias: A menina sem estrela. "A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas", escreveu.

*Estagiário sob a supervisão de Humberto Rezende

Origem indefinida
Apesar do nome, a doença não surgiu na Espanha, mas os jornais do país europeu noticiaram a sua existência primeiro — visto que, pelo fato de o país estar neutro na guerra, não sofria com a censura. Não se sabe exatamente a origem, mas o primeiro registro oficial se deu nos Estados Unidos, em março de 1918.

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Adiar é necessário, avaliam especialistas

25/10/2020

 

 

Diferentemente do que ocorreu com a gripe espanhola, que ficou menos de três meses no Brasil, é difícil prever quando a covid-19 — declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março — deixará de ser uma ameaça à população brasileira. Portanto, é consenso entre especialistas e autoridades consultados pelo Correio que, diante desse cenário, não há condições de se realizar o carnaval em fevereiro de 2021.

Diante dessa realidade, prefeitos das cidades que costumam receber grande fluxo de turistas para a festa têm se esforçado para encontrar uma data comum. Segunda capital que mais reuniu foliões em 2020, São Paulo foi a primeira a confirmar o adiamento, sem, no entanto, anunciar para quando. Nos bastidores, os gestores municipais trabalham com os meses de maio, junho e julho como possibilidades. Ainda não se sabe, porém, quando o martelo será batido.

Pesquisadores alertam que, dado o histórico da festa no Brasil e os vastos exemplos de desrespeito ao distanciamento social observados desde o início da pandemia, as autoridades devem levar em conta a possibilidade de manifestações espontâneas. "Pode haver uma desmobilização dos festejos formais, dos blocos tradicionais, do desfile das escolas de samba... Essa festa institucionalizada é possível que não ocorra, mas acho pouco provável que não haja gente na rua. As praias e os bares lotados, hoje, são um ótimo exemplo disso. O que faria a gente acreditar que daqui a seis meses o povo não vai para a rua?", resume Leonardo Bruno.

Os outros especialistas endossam a opinião do pesquisador do Museu Nacional. "É muito provável que grupos de amigos, ou até mesmo pessoas sozinhas, iniciem um tipo de manifestação carnavalesca e, naturalmente, aquilo vire um bloco de proporção maior", pontua a pesquisadora Rita Fernandes, autora do livro Meu bloco na rua. "É tudo muito inédito, são muitas variáveis. A única coisa que se tem certeza é que não dá para ser irresponsável e nós, que fazemos isso de forma organizada, motivarmos um carnaval em um momento em que ele não pode acontecer", ressalta Fernandes, que também é fundadora e presidente da Sebastiana — Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro — liga que reúne alguns dos mais tradicionais blocos do Rio.

Remarcar para quando?
Sobre a possibilidade de um adiamento, porém, os pesquisadores têm opiniões divergentes. Para Paulo Miguez, a mudança de data pelo menos amenizaria os impactos econômicos: "A transferência atende a dois interesses: à vontade de fazer festa, mas, especialmente, à economia da festa. O carnaval afeta desde o nanonegócio, do cara que vai para a rua catar latas de cerveja, até aqueles que trabalham nos camarotes, nos trios, os músicos. Com o adiamento, toda essa indústria cultural vai poder se organizar, com perdas, mas vai fazer o que não foi feito em fevereiro".

Rita Fernandes, por outro lado, lembra que a Terça-feira Gorda é apenas o ápice de uma celebração que começa muito antes, com as festas de pré-carnaval, em janeiro, e defende que o evento fique para 2022. "Se a gente não puder fazer na data, o que fizermos depois será apenas uma celebração, não, o carnaval. É muito difícil recriar esse espírito carnavalesco. Não dá, por exemplo, para pensar em tirar o réveillon do fim do ano", avalia. "A gente tem que respeitar o ciclo das festas tradicionais. Não concordo com o adiamento. Entendo a necessidade pelo lado de quem move uma economia forte em relação a isso, como é o caso das escolas de samba. Talvez seja importante por mover uma cadeia produtiva enorme que precisa ser ativada. Mas, uma folia fora da data seria apenas uma expressão", acrescenta.

Independentemente de ser realizado no meio de 2021 ou apenas em 2022, o próximo carnaval deve repetir o que houve em 1919, após a gripe espanhola, acredita Miguez. "Será o maior de todos os tempos, celebrando a vitória da vida e da ciência", projeta o docente da UFBA. "Baco e Momo (figuras das mitologias romana e grega, respectivamente, ligadas a festas e celebrações) vão ficar nos devendo este ano, mas vão preparar algo grande para o próximo", completa. (AI, FJ, HL e LPT)

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Impacto cultural 

25/10/2020

 
 

Quando se fala nos prejuízos que um adiamento ou cancelamento do carnaval podem causar, é fácil pensar no aspecto financeiro. E ele, de fato, tem um peso enorme. Somente neste ano, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Olinda (PE) reuniram 43,5 milhões de foliões, segundo dados das secretarias estaduais, compilados pelo Ministério do Turismo. A movimentação na economia foi de cerca de R$ 8 bilhões, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio (CNC).

A incerteza acerca da realização da festa em 2021 já começa a mostrar impactos. As reservas em hotéis estão praticamente zeradas nessas cidades, a venda de abadás em Salvador está bem aquém do que se costuma registrar a esta altura do ano, assim como a procura por passagens aéreas para os destinos mencionados. "Houve uma mudança de comportamento dos viajantes. As compras de passagens para os destinos nacionais tradicionalmente mais procurados para o carnaval apresentaram queda significativa no último trimestre", explica, em nota, a empresa de revenda de bilhetes aéreos MaxMilhas.

É preciso, porém, levar em consideração, também, o impacto cultural. O Brasil ser considerado como a terra do carnaval não é em vão. Além de ter alcançado marcos globais — em 1995, o Galo da Madrugada, em Recife, foi considerado o maior bloco carnavalesco do mundo pelo Guinness Book, mesma publicação que reconheceu a folia em Salvador como o maior carnaval de rua do planeta em 2005 —, o país tem os festejos intimamente ligados à construção de sua história.

Há relatos de celebrações carnavalescas no Brasil desde a época da colonização. A origem do carnaval como conhecemos, contudo, remonta ao século 17, com a chegada do entrudo ao país. "O entrudo é uma festa trazida da Europa, em que as pessoas jogavam água, limão e água de cheiro umas nas outras. Uma brincadeira quase infantil, mas que, conforme foi adquirindo as características da cidade e se espalhando não só entre os nobres, foi ganhando outras facetas. Chega um momento em que as brincadeiras ficam violentíssimas, as pessoas passam a jogar urina, farinha e ovo podre, e a nobreza não quis mais participar", relata Leonardo Bruno.

Com essa divisão de classes, tão marcante no país ao longo da história, é que a folia do Momo se desdobrou nas mais diversas manifestações observadas hoje. "De 1800 para 1900, com a República instalada, o Brasil queria se enxergar como a Paris dos trópicos. Então capital federal, o Rio fez uma série de mudanças urbanísticas para se configurar como uma cidade à moda europeia. E a festa sofre influências daí. A nobreza começa a importar determinados eventos da Europa, como os bailes de máscaras e os desfiles da alta sociedade em carros. Mas o povo também estava criando suas formas de festejos, como os blocos, que eram procissões religiosas, com cânticos típicos. E nos anos 20, efetivamente, surgem as primeiras escolas de samba", acrescenta o pesquisador, para quem (leia Palavra de especialista) é impossível antecipar o impacto de um ano sem carnaval para a identidade brasileira. (AI, FJ, HL e LPT)

Palavra de especialista 
Qual será o efeito do adiamento do carnaval?

"É um prejuízo social e cultural. O carnaval faz parte do jeito de ser do brasileiro. A constituição do Brasil está ligada ao carnaval. É uma associação muito forte, que se reelabora a cada ano. O carnaval é uma festa do encontro, da troca, da disputa pelas ruas. A falta disso seria uma falha grande dentro de um processo de relações sociais."

Felipe Ferreira, professor da Uerj e criador do Centro de Referência do Carnaval

"Será uma perda imensa, desde o campo simbólico. Quando você entrega a chave da cidade para o Rei Momo, está dizendo simbolicamente que os papéis estão alterados, que a rotina está alterada, que as regras tradicionais não estão valendo. É uma perda imensa até para a saúde mental, para a sanidade das pessoas, para a alegria do povo brasileiro. O carnaval serve como propulsor de uma energia para a gente aguentar o ano, que já está tão difícil."

Rita Fernandes, autora do livro Meu bloco na rua

"Seriam prejuízos em três dimensões: a de que somos o país da festa, a de que somos o país em que a festa virou uma grande economia e a de que somos o país em que a festa sempre foi um espaço de resistência"
Paulo miguez, professor da UFBA

"O carnaval é a representação máxima da brasilidade. Ele é brasileiro inclusive nessa multiplicidade, que revela muito da gente. É o momento em que a gente reafirma nosso pacto de brasilidade. Todo ano antes do carnaval eu brinco: 'Vamos mais um ano defender a nossa brasilidade, o que é ser brasileiro, vamos lutar por isso aqui apesar de todas as dificuldades'. É muito triste se a gente não tiver em algum ano a reafirmação desse pacto."
Leonardo Bruno, pesquisador-orientador do Observatório de Carnaval do Museu Nacional.