O Estado de São Paulo, n.46310, 02/08/2020. Política, p.A7

 

Empresa ligada a conselheiro ganha contratos do BNDES

Patrik Camporez

02/08/2020

 

 

Presidente do Conselho de Administração é sócio de consultoria que venceu licitações; especialistas veem conflito de interesses

Banco. Para especialistas em Direito Administrativo, o BNDES precisa explicar ligação de conselheiro com empresa que detém contratos da instituição

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou, entre dezembro de 2019 e fevereiro deste ano, três contratos de consultoria com o consórcio do qual faz parte a G5 Partners Consultoria e Participações, no valor total de R$ 9,7 milhões, para fazer a modelagem de privatizações ou venda de participação em estatais que o governo Jair Bolsonaro planeja realizar. O vencedor dos pregões eletrônicos tinha, até 31 de outubro de 2012, como um dos seus sócios, Marcelo Serfaty, presidente do Conselho de Administração do BNDES. Ele assumiu a vaga no banco em 20 de novembro.

O empresário continua vinculado com a G5 Partners. Eles são sócios na G5 Gestora de Recursos, da qual Serfaty detém 49,5% do negócio e segue como membro de comitê de investimentos. Essa empresa gerencia patrimônios privados. A G5 Partners tem 49% do negócio. Documentos aos quais o Es

tadão teve acesso mostram que a área de integridade, controladoria e gestão de riscos do banco alertou sobre potencial conflito de interesses e pediu que o vínculo de Serfaty com a G5 fosse analisado pelo Comitê de Ética da instituição, o que não ocorreu. O banco enviou o caso para análise da Controladoria Geral da União (CGU), que ainda não se posicionou.

O consórcio da G5 Partners ganhou a licitação para dar consultoria na privatização/participação dos aeroportos de Guarulhos, Galeão, Brasília e Confins no dia 4 de dezembro de 2019; da Casa da Moeda em 22 de janeiro deste ano; e da Ceagesp e Ceasa Minas em 21 de fevereiro. Quando ingressou no BNDES, a G5 Partners já disputava dois dos pregões (Casa da Moeda e da Infraero). Serfaty disse que não tinha conhecimento disso porque era "um sócio irrelevante".

No anúncio do pregão dos aeroportos, Serfaty também tinha vínculo com a G5 Tecnologia de Segurança e Participações. Ele se desligou dela em 10 de janeiro deste ano. Segundo o empresário, a G5 Tecnologia é uma investida de um fundo e não uma empresa do conglomerado G5 Partners.

Em relatório de análise da nomeação do empresário para o conselho administrativo do BNDES, apresentado à diretoria do banco no dia 1.º de novembro do ano passado, o Comitê de Elegibilidade da instituição destacou que Serfaty era sócio-fundador da área de Private Equity da G5 Partners e detinha participação de 50% na G5 Gestora de Recursos. "É de relevo ademais destacar que, no tocante à G5 Gestora de Recursos, o indicado, que detém metade do capital social, permanecerá no comitê de investimento da sociedade", afirma o relatório.

"Apesar de não haver concorrência direta entre as instituições e o Sistema BNDES, o papel relevante desse último na economia aponta para um potencial conflito de interesses, especialmente em decorrência da atuação da BNDESPar", registrou ainda o documento.

Na ocasião, o comitê orientou para que, caso a Assembleia-Geral do BNDES decidisse nomear o empresário como integrante do conselho, "os conflitos ora apontados" fossem levados ao Comitê de Ética do BNDES para se avaliar "eventuais recomendações acerca das situações de conflito que julgar necessárias".

O Comitê de Ética do BNDES afirmou ao Estadão não ter competência para realizar análises sobre conflitos de interesse em potencial. A questão, informou, foi encaminhada à Controladoria-Geral da União (CGU).

Setores. Pelos contratos firmados com o BNDES, a G5 Partners vai elaborar, por meio de um consórcio de três empresas parceiras, modelos de venda da Casa da Moeda do Brasil, da Ceagesp, da Ceasa Minas e de participação dos aeroportos de Guarulhos, Galeão, Brasília e Confins. A companhia se apresenta como líder no mercado de fusões e aquisições no País. Entre seus clientes estão empresas que são potenciais interessadas em investimentos nas áreas de infraestrutura, transportes e empresas emergentes.

A indicação de Serfaty ao conselho foi analisada pelo Comitê de Elegibilidade, que tem como função avaliar a experiência profissional do candidato e decidir se o "notório conhecimento" apresentado é compatível com o cargo indicado, com salário de cerca de R$ 8 mil.

À instituição, Serfaty apresentou um currículo no qual informou ter doutorado em Economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). A mesma informação aparece no site do BNDES. Segundo a FGV, ele "cursou apenas as disciplinas", sem apresentar a tese. "Eu fiz todas as cadeiras do curso de doutorado, mas não fiz tese. Eu precisava trabalhar porque eu precisava ganhar a vida, não é...", justificou Serfaty. Ele afirma nunca ter informado no currículo ser doutor.

O fato de ter doutorado não é condicionante para ele exercer o cargo no banco.

Legislação. Especialistas ouvidos pelo Estadão disseram que a relação do presidente do Conselho de Administração do BNDES com uma empresa contratada pelo banco indica conflito de interesses, previsto na Lei das Estatais, de junho de 2016, e no Código de Ética do BNDES.

Professora de Direito Administrativo da FGV-SP, Vera Monteiro analisou a nomeação de Serfaty e os contratos da empresa do conselheiro fechados com o BNDES. Vera identificou uma "série de situações" que, segundo ela, precisam "urgentemente" ser explicadas pelo banco para evitar perda de credibilidade da instituição no mercado. "A Lei das Estatais é clara ao dizer que não pode ser indicado como membro do conselho de uma estatal pessoa que possa ter qualquer forma de conflito de interesses com a própria empresa da qual é dono", afirmou a professora da FGV.

Uma das principais autoridades do País na área de Direito Administrativo, Vera disse ainda que a "confusão" entre o público e o privado, no caso da indicação de Serfaty para o conselho, não deixa dúvida sobre a existência de conflito de interesses. "Qualquer conflito de interesses é um impedimento para atuação. Isso aqui não há dúvida", aponta ela, sobre o fato de o empresário ter sido dono de uma consultoria que atende clientes com relações com o BNDES. "O BNDES precisa revelar a ausência de conflito de interesses, urgente. É um dever que decorre da Lei das Estatais. É um dever."

O professor de Direito da Universidade Mackenzie e da Escola Superior de Advocacia (ESA) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo Flávio de Leão Bastos Pereira concorda. "Se o indivíduo passa a receber informações que possam lhe dar vantagem em negócios paralelos ou privados, evidentemente há conflitos de interesses", ressaltou. "Quem atua na função pública deve ter como foco a proteção e a tutela do patrimônio público. Se a pessoa passa a ter ganhos particulares, cabe ao Ministério Público e órgãos de controle averiguar", disse.