Correio braziliense, n. 20981, 02/11/2020. Cidades, p. 17

 

Todas elas podem empreender

Camila de Magalhães 

02/11/2020

 

 

Moradora do Sol Nascente, Vanessa Cordeiro (@belas_unhas231), 37 anos, perdeu o emprego de frentista durante a pandemia de covid-19 e teve de se virar para conseguir outra fonte de renda. Como sempre gostou de fazer unhas, resolveu apostar na realização de um sonho antigo: abrir o próprio salão de beleza. Pegou as economias que tinha, comprou vários esmaltes e montou um pequeno salão em casa. "Obstáculos sempre vão ter. A gente não pode desistir do sonho. É o que estou fazendo, lutando pelo meu sonho, correndo atrás. Quero ajudar a minha família", ressalta a nova empreendedora.

Força de vontade, Vanessa tem de sobra. O que faltavam eram conhecimentos técnicos para estruturar e manter um negócio. Foi aí que ela encontrou a oportunidade de entender melhor o mundo do empreendedorismo, por meio do curso on-line gratuito Todas Elas — iniciativa da Fundação Assis Chateaubriand com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). As aulas começaram em setembro e seguem até 12 de novembro. "Essa experiência está me ajudando a entender como tudo funciona, a montar uma clientela, a ter uma organização financeira, para eu saber quanto ganho, quanto gasto. Eu não tinha noção disso. Está sendo maravilhoso e só tenho a agradecer", comenta Vanessa.

Ao todo, 620 mulheres de baixa renda se inscreveram. Elas são de seis regiões administrativas do Distrito Federal: Ceilândia, Estrutural, Riacho Fundo, Samambaia, São Sebastião e Sobradinho. Os negócios desenvolvidos pelas participantes durante o curso abrangem diversas áreas. Há participantes que fazem bolo, bombons, artesanato, design de sobrancelhas, maquiagem; diaristas que querem transformar o serviço de limpeza em negócio; revendedoras de produtos de beleza. Todas elas agregam valor a essas atividades, oferecendo-as junto a outros produtos.

Empoderamento

Segundo a coordenadora do projeto Todas Elas, Mayane Burti, o objetivo do curso é usar o empreendedorismo como forma de empoderamento, geração de renda e mudança de vida para as participantes e as comunidades onde elas moram. As aulas on-line, exibidas na plataforma do Facebook, ficaram divididas em três fases: descoberta, aperfeiçoamento e fortalecimento.

"Na primeira, as mulheres olharam para si, para o que sabem fazer, identificaram os próprios talentos e os visualizaram como possibilidade de negócio", detalha Mayane. "Também as estimulamos a perceber quem elas têm por perto, para pedir ajuda ou suporte ao negócio, qual é a rede delas, quem são os clientes, os fornecedores. Elas fizeram um diagnóstico do negócio e de si mesmas. (Trata-se de) uma fase importante de autodescoberta, empoderamento, autoconfiança, consciência de que são empreendedoras, relacionamento com o cliente e de foco no negócio", completa a coordenadora.

Nas fases seguintes, espera-se que as empreendedoras se aperfeiçoem e entendam mais das técnicas que podem estruturar melhor os negócios: gestão de caixa, controle de estoque e até como vender. Na última fase, que está em andamento, a ideia é que as participantes se fortaleçam — pessoalmente e umas às outras —, trabalhando ainda mais conceitos como redes, formalização e microcrédito.

Sobre amor-próprio

Para o especialista em pessoas Jota Lucas (@jotalucasoficial), parceiro do projeto, foi gratificante compartilhar a experiência de vida com as participantes. "O que expliquei a elas é que cada pessoa com quem eu falo não é só uma pessoa, é um sistema. Quando essa pessoa consegue se perceber, enxergar-se e se amar, ela consegue mudar para a essência. Qual era o sonho que você tinha quando era criança, o que gostou de fazer, o que a vida te levou a ser? Se você faz o que você sonhou, você é feliz", acredita. "Eu as estimulei a voltar a ser o que eram, tirar o peso de que têm de ser lindas, maravilhosas e cheirosas. Elas têm de ser como são, amarem-se. Não existe a perfeição. É sobre aceitar onde podem melhorar, aceitar os pontos de melhoria e aqueles em que são muito boas", completa Jota Lucas.

Pensar sob essa perspectiva foi transformador para a maranhense Socorro Cavalcante, 52, moradora de Ceilândia, mãe de duas filhas e avó de cinco netos. Ela atuou como doméstica por muitos anos e, recentemente, passou a trabalhar como diarista. O amor pela cozinha e a necessidade de aumentar a renda familiar fizeram com que ela começasse a vender marmitas congeladas. Com apoio das chefes, aumentou as vendas e criou um perfil no Instagram (@socorroquedelicia), em que exibe o cardápio de pratos fitness. "Uma das minhas patroas perguntou se eu queria me inscrever no Todas Elas, e eu disse que sim. Quero parar de trabalhar como diarista para abrir meu próprio negócio", revela Socorro.

A participante considera a iniciativa um divisor de águas. "Entrei uma (pessoa) no curso e vou sair outra, mais sábia. Estou aprendendo a me comunicar e a não ter vergonha nem medo de fazer o que gosto. Isso está me ajudando muito. Por sermos humildes e não termos conhecimento nem dinheiro para investir no nosso trabalho, ficamos com um pouco de receio, de vergonha, de não dar certo. E, neste curso, estou aprendendo que existem pessoas que podem nos ajudar a fazer o que gostamos. Eu me sinto mais preparada, com mais conhecimento. Conheço a cozinha, mas é importante saber direitinho como divulgar. Nunca tive a oportunidade de estudo nem ninguém para me incentivar e me ajudar. Agora, com alguém me ensinando a fazer o que gosto e me incentivando, é bem gratificante", complementa Socorro.

Frutos do trabalho

Por acreditarem na força da causa para transformar a vida de mulheres de baixa renda, 61 parceiros de todo o DF — entre pessoas, empresas e organizações — têm apoiado oficialmente a iniciativa Todas Elas. Uma dessas parceiras também é aluna do curso, a moradora da Estrutural Maria Ana Gomes (@maryannags2), 27 anos. Ela conta que o desejo de empreender está presente desde a infância, quando via a mãe atuar como diarista, sem tempo para nada além de trabalhar e cuidar dos quatro filhos sozinha, em uma comunidade com o mínimo de saneamento básico. "Vendo a condição da minha mãe, percebi que carteira fichada não dava certo. Na minha mente, formulei a ideia de que dinheiro fácil eu teria sendo empresária. Eu nem conhecia essa expressão 'empreendedorismo', à época", relata.

Aos 15 anos, começou a fazer bombons para pagar um curso de administração oferecido na escola. Aos 18, teve a oportunidade de fazer um curso gratuito de crochê. Era um hobby prazeroso, mas ela não sabia como ganhar dinheiro com isso. Acabou trabalhando como babá e, sempre que precisava de uma renda extra, voltava aos bombons. Os anos passaram-se. Maria Ana se casou e insistiu algumas vezes no crochê, mas não acertava no preço e não entendia nada sobre conquistar clientes.

Maria Ana começou a assistir vídeos no YouTube, aceitou-se como artesã e decidiu estudar para ser dona do próprio negócio, focando no crochê e nos bombons — os dois muito elogiados, segundo ela. "Uma fornecedora me avisou do curso Todas Elas, e eu vi que era a oportunidade de fazer meu trabalho crescer. Quero que ele floresça e dê frutos. Moro na Estrutural há 20 anos. No curso, tem, aproximadamente, 100 mulheres da minha cidade, e eu não conhecia nem 10 (delas). Isso gerou um desejo de fazer meu leque de contatos. Minha intenção é tornar meus dois negócios conhecidos e alcançar mães que sejam solteiras, de baixa renda e estejam em situação de vulnerabilidade", afirma.

A artesã conta que, quando chamada para ser uma das apoiadoras do Todas Elas, mexeu nos caderninhos, calculou e viu que poderia ajudar participantes do curso, oferecendo brindes do próprio trabalho. "Essas 600 mulheres estão tendo uma oportunidade que não tive antes. Ao longo dos anos, tive de garimpar em meio a muito conteúdo, muita informação falsa que deu errado. Agora, está tudo garimpado. Estou ansiosa pelas últimas aulas, que são conteúdos sobre os quais não tenho tanto entendimento. A cada ciclo que passa, acrescento mais coisas ao meu leque de conhecimento, e a minha empresa cresce. Vocês ainda vão ouvir muito sobre os bombons e crochê da Mary", brinca Maria Ana.

Sonhar, aprender e realizar

Para valorizar a autoestima das participantes, o projeto Todas Elas fez uma parceria com o Instituto Ana Hickmann Taguatinga (@institutoanahickmanntaguatinga), que sorteou vagas para 25 empreendedoras participarem de um workshop de automaquiagem e cabelo em outubro. A ideia foi mostrar que o importante não é só a geração de renda, mas o empoderamento, que leva à liberdade da mulher e gera impacto em várias áreas da vida delas.

"Além de profissionalizar pessoas para a área da beleza, trabalhamos a autoestima de mulheres tão sofridas, que acham que não conseguem nada, que não podem nada. Aqui, elas podem sonhar, aprender e realizar. Estão aprendendo a valorizar a si próprias, a ver que podem tudo", destaca Rosângela Duarte Machado, sócia e proprietária da unidade do instituto. "Vimos entrarem mulheres tímidas, caladas, receosas. E elas saíram maravilhosas, autoconfiantes, empoderadas", completa a sócia de Rosângela, Marta Machado Serique.