Correio braziliense, n. 20983, 04/11/2020. Mundo, p.10-13

 

Disputa histórica

Nahima Maciel 

Carmen Souza 

04/11/2020

 

 

Os americanos protagonizam uma disputa presidencial que entrou para a história. Em meio a uma grave crise sanitária, foram às urnas em massa para decidir quem ocupará a Casa Branca pelos próximos quatro anos. A votação, finalizada ontem, acumula recordes. Mobilizou o maior número de eleitores desde o início do século 20, somou uma quantidade jamais vista de votos antecipados (101 milhões) e teve uma participação de latinos nunca antes registrada.

Como esperado, a polarização política que marca o país ao longo dos últimos quatro anos se refletiu nas urnas. Até o fechamento desta edição, às 2h30, o democrata Joe Biden liderava a disputa com 205 delegados e Donald Trump tinha 136, segundo os meios de comunicação estadunidenses. Mas as atenções se voltavam para possíveis vitórias do republicano em estados considerados decisivos, como Flórida e Pensilvânia, com 29 e 20 votos no colégio eleitoral, respectivamente. E as bolsas de apostas começavam a indicar a possibilidade de uma reviravolta que garantiria a reeleição de Trump. São necessários 270 delegados para conquistar a Casa Branca.

Independentemente do resultado, especialistas concordam que essa é uma disputa memorável. O número de votos pelo Serviço Postal é equivalente a 73% dos votos da eleição anterior, segundo a organização US Elections Projects, sendo que, em quatro estados, houve mais de 100% de votação pelos correio do que em 2016. Entre os eleitores latinos, outro recorde: um total de 8,6 milhões votaram antes da abertura das urnas e, segundo a organização Voto Latino, 33% dos votos enviados pelo correio em estados como Arizona, Texas, Florida, Pennsylvania, Nevada e Carolina do Norte são de eleitores que não participaram do pleito de 2016. O grupo registrou mais de 600 mil eleitores para a votação de 2020, sendo que três quartos deles têm entre 18 e 39 anos.

A quantidade de votos pelo correio surpreendeu analistas políticos, embora seja um movimento natural por conta da covid-19, que também bateu recorde de novos casos em 24 horas na última segunda-feira, com 93 mil contaminados. "Essa votação é um fator relevante para mitigar os riscos inerentes das aglomerações na pandemia", explica a cientista política Ariane Roder, do Instituto Coppead de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O esforço para votar foi tão grande que nem a contaminação pelo vírus derrubou os eleitores. Em St Louis (Missouri), mesários recolheram votos de pessoas infectadas com a covid-19 vestidos com roupas de proteção máxima, respiradores e face shields. De forma geral, não houve grandes incidentes, mas muitos comerciantes nos maiores centros urbanos colocaram proteção extra nas fachadas de seus estabelecimentos com medo de possíveis ondas de violência durante e após a votação.

Para Ariane Roder, não foi apenas o coronavírus o responsável pelos 101 milhões de votos enviados antecipadamente. "Acho que a polarização é o principal fator para explicar isso", diz. "A despeito das diversas críticas endereçadas à política e aos políticos, é por meio dela que se faz mudanças e que se implementá ideias e projetos. Sendo assim, quando o ímpeto de mudança é relevante e o cenário é de polarização, a tendência, de fato, é ir às urnas. Trata-se de uma grande disputa."

James Green, historiador da Brown University, acredita que a covid-19 também ajudou, mas não apenas pelo medo de aglomeração. "A política sanitária foi um desastre, e semana passada teve um auge de infecções, as pessoas ficam ouvindo o presidente dizendo que está tudo bem, que está acabando. Isso revoltou muita gente, muitos velhinhos republicanos que estão com medo estão revoltados", diz. Ele garante que o clima da campanha foi o mais estranho da história dos EUA. "Não houve uma campanha tradicional. Na reta final, Trump tentou com comícios, mas isso também foi revoltante porque a maioria das pessoas não usava máscara."

Não representatividade
Juscelino Colares, professor da Case Western Reserve University School of Law, em Ohio, acredita que o clima controverso da campanha pode ser atribuído também a um sentimento de não representatividade da população americana. "Ela não se viu representada na mídia americana, e isso faz com que as pessoas tenham reação forte de quererem se fazer ouvidas. A votação tem sido muito expressiva por correio e, em decorrência dessa flexibilidade, as pessoas, por precaução, procuraram requisitar o voto por correio", diz.

Colares lembra que, normalmente, os eleitores democratas tendem a ter uma vantagem na votação pelo serviço postal porque, tradicionalmente, gostam de decidir o voto antes do pleito. O grupo dos conservadores, que votaria no partido Republicano, teria um contingente maior de indecisos e seria mais desconfiado quanto às fraudes. Por isso, prefere a urna diretamente. "Os democratas tendem a formar a sua impressão sobre o candidato no momento anterior e não mudar de opinião, diferentemente do eleitor mediano, do eleitor indeciso", explica. "Sem dúvida, o recorde expressivo na votação pelo correio é surpreendente e mais surpreendente ainda é que os democratas não aparentam atingir as metas tendo em vista que tendem a superar os republicanos."

_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Novo discurso e visita ao passado 

04/11/2020

 

 

Donald Trump encerrou a corrida pela Casa Branca falando em judicialização das eleições dos Estados Unidos. Desconfiado com os votos por correio, ameaçou: "Assim que acabar, vamos entrar com nossos advogados". Ontem, o discurso mudou. Ao passar pela sede da campanha do Partido Republicano, em Arlinggton, na Virgínia, o presidente surpreendeu: "Deveríamos ter o direito de saber quem ganhou na mesma noite", cobrou, depois de percorrer mais de 4.000km à caça dos últimos votos — mais do que a distância entre Brasília e Santiago, no Chile.

O presidente referia-se, principalmente, à discordância com a Suprema Corte, relutante em intervir em uma decisão que permitisse à Pensilvânia continuar contando os votos recebidos pelo correio até três dias após a eleição. A medida foi tomada em meio às complicações logísticas do país diante da pandemia do novo coronavírus, que teve uma grande quantidade de votos enviados pelo correio. Trump votou antecipadamente, na Flórida.

A Pensilvânia era vista como um estado-chave nesta eleição. Tanto Trump quanto Biden fizeram campanha lá nos dias anteriores à eleição. "Você não pode atrasar essas coisas por muitos dias e, talvez, semanas", declarou Trump, ao mesmo tempo em que os cidadãos americanos votavam em todo o país. Mais de 100 milhões de pessoas votaram antecipadamente. O mundo inteiro está esperando. Este país está esperando".

A agenda de Trump no dia da eleição começou ainda na madrugada, em Michigan. O último comício terminou nas primeiras horas de ontem. Pela manhã, o candidato deu entrevista à Fox News. Na sequência, visitou a sede do Partido Republicano. Cauteloso e aparentemente respeitoso, mediu palavras. Evitou favoritismo e prognósticos antes da abertura das urnas. Estava prevenido após campanha acirrada contra o democrata Joe Biden.

Quando questionado se havia escrito um discurso para a reeleição ou uma eventual derrota, Trump disse que não. "Ganhar é fácil. Perder nunca é, não para mim", respondeu, descartando, também, a hipótese de declarar-se reeleito. "Acho que vamos ter uma vitória, mas apenas quando houver vitória. Não há motivos para brincadeira".

O republicano falou sobre o sentimento em relação à possibilidade de reeleição. "Nos sentimos muito bem. Acredito que vamos vencer", disse Trump ao canal Fox News em entrevista por telefone. Àquela altura, o presidente projetava vitória em estados cruciais, incluindo Arizona, Flórida e Texas, além da Carolina do Norte e da disputada Pensilvânia. "Acreditamos que estamos indo muito bem em todos os lugares", avaliou antes de voltar à Casa Branca.

Segundo informação da CNN, o comitê de campanha de Trump marcou uma festa para 250 convidados no Salão Leste da Casa Branca em caso de reeleição. Os convidados passariam por testes rápidos de covid. Porém, a legislação vigente em Washington proíbe aglomerações com mais de 50 pessoas para impedir a transmissão da doença.

Ao longo de sua vida pública, tornou-se uma tradição para o democrata Joe Biden retornar à casa em que passou parte da infância, na cidade industrial de Scranton, no estado da Pensilvânia. Ontem, último dia das eleições presidenciais, ele cumpriu o ritual. E, para atrair sorte, escreveu seu nome e uma mensagem numa das paredes da sala. "Desta casa à Casa Branca com a Graça de Deus", registrou Biden com caneta preta, acrescentando a data "11/03/2020".

Mais tarde, na Filadélfia, a maior cidade do estado, Biden, cometeu alguns lapsos, anunciando a seus apoiadores que apresentaria o filho Beau, falecido em 2015, aos 46 anos, após lutar contra um tumor cerebral., Em seguida, o presidenciável disse que queria anunciar sua filha Natalie, apontando para uma de suas netas, que o acompanhava na viagem. Percebendo seu erro, Biden recuou e disse: "Oh, não espere, não é ela, é a outra."

A perda de capacidade cognitiva do democrata tem sido um tema em toda a campanha, desde as primárias do partido. O presidente Donald Trump, fez constantes referências aos erros do adversário e até mostrou gravações em seus comícios de campanha para entreter os participantes.

Na Filadélfia, Biden foi saudado por um grande número de eleitores, que o chamava de "Tio Joe". Satisfeito com a recepção, ele se mostrava impressionado com o grande comparecimento às urnas. "Vamos ter mais pessoas votando este ano do que em qualquer outro momento da história americana", observou.

A primeira escala foi Stranton. "Vamos para casa", disse Biden, acompanhado por duas de suas netas, ao desembarcar na cidade para realizar um de seus últimos gestos de uma campanha presidencial de 18 meses. Lá o clima foi de grande emoção para o ex-vice-presidente de Barack Obama. "Estou muito orgulhosa de você", disparou Anne Kearns, atual dona da primeira casa onde Biden viveu até completar 10 anos, quando sua família mudou-se para Delaware.

A visita de Biden agitou a rua. Mais de 100 vizinhos, seguidores ou curiosos, quase todos com máscaras, reuniram-se perto de sua antiga casa, com um toldo cinza na entrada e venezianas pretas. "Está aí! Oh, meu Deus!", gritou o eleitor de primeira viagem Mardan Daurilas, 19 anos, acrescentando. "Esse é o meu futuro presidente."

Biden encontrou alguns vizinhos antigos e fez outras paradas pela cidade, incluindo a casa da mãe do senador Bob Casey e um escritório sindical local, num esforço final para obter votos. Como o democrata, Trump deu grande atenção a Pensilvânia, um estado que muda suas preferências partidárias de uma eleição para outra e se tornou, ao lado da Flórida, o principal campo de batalha desta campanha.

À tarde, Biden retornou para sua casa em Wilmington, Delaware, de onde acompanhou o fim da votação e a apuração dos votos.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Corrida pela maioria no Congresso 

Jorge Vasconcellos 

04/11/2020

 

 

Além de escolher entre o democrata Joe Biden e o republicano Donald Trump na eleição presidencial, os norte-americanos foram às urnas, ontem, também para votar nos candidatos para o Congresso. De acordo com as últimas pesquisas, os democratas podem conquistar a maioria no Senado e manter o domínio na Câmara dos Representantes. Uma das novidades é a democrata Sarah McBride, primeira mulher transgênero da história eleita para o Senado. Aos 30 anos, ela venceu o pleito por Delaware, mesmo estado de Joe Biden. Sarah, aliás, chegou a estagiar na Casa Branca durante a gestão de Barack Obama.

Neste ano, estão em disputa 35 das 100 cadeiras do Senado e todas as 435 da Câmara. Atualmente, os republicanos tem 53 senadores. Foi com essa maioria que eles conseguiram barrar o impeachment de Trump e, mais recentemente, aprovar a nomeação da juíza conservadora Amy Coney Barrett para a Suprema Corte.

Das 35 cadeiras em disputa no Senado, 23 hoje são ocupadas por republicanos e 12 por democratas. De acordo com o jornal The Washington Post, desses 23 republicanos, 12 correm risco de perder a vaga. Entre os 12 democratas, há dois que enfrentam uma eleição competitiva.

Os democratas podem terminar a eleição com até 55 dos 100 assentos do Senado, preveem o Centro para Políticas da Universidade da Virgínia, o Cook Political Report e o Inside Elections. Isso daria ao partido de Joe Biden, pela primeira vez em uma década, uma maioria nas duas Casas do Congresso. Também tem potencial para provocar um cenário político caótico, no caso da reeleição de Trump.

Por outro lado, caso Biden vença a eleição e os democratas assumam o controle do Congresso, há a possibilidade da aprovação de uma densa agenda de projetos alinhados com os ideais de centro-esquerda. Essa é a opinião do cientista político Lincoln Mitchell, professor da Universidade de Columbia, em Nova York.

"É quase certo que os democratas manterão o controle da Câmara dos Deputados. Eles têm uma chance de ganhar o controle do Senado, mas eu diria que é cerca de 50-50 de probabilidade agora. No entanto, se o fizerem, vão aprovar uma grande quantidade de legislação no ano que vem, assumindo Biden como presidente. Mas não espero que a legislação seja muito radical, espero que seja mais de centro-esquerda", disse Mitchell ao Correio.

Limbo
Os senadores, porém, estão se preparando para a possibilidade de não saber por dias, ou mesmo semanas, qual partido terá a maioria em 2021. Espera-se um atraso nos resultados para o Senado, em razão do número recorde de cédulas pelos correios e disputas bastante acirradas, como as que ocorrem nos estados do Arizona, Iowa, Maine e Carolina do Norte. Um eventual atraso em qualquer um desses lugares pode deixar os legisladores em um estado de limbo, enquanto esperam para descobrir quem controlará o Senado a partir de janeiro.

Além disso, estrategistas e observadores políticos esperam que uma, se não ambas as corridas para o Senado na Geórgia, exijam um segundo turno em 5 de janeiro, na mesma semana em que os senadores devem se reunir para o início do 117º Congresso. A lei estadual estipula que um segundo turno é necessário se nenhum candidato obtiver mais de 50% dos votos no dia da eleição.

Esse cenário é quase certo na eleição especial para a vaga da senadora republicana Kelly Loeffler, disputada por 20 candidatos. Mas também parece uma possibilidade real na disputa entre o senador republicano David Perdue e o desafiante democrata Jon Ossoff. Pesquisas recentes mostram ambos os candidatos com menos de 50% de apoio.

No Maine, os estrategistas de ambos os partidos esperam possíveis resultados atrasados na disputa entre a senadora republicana Susan Collins e a presidente da Câmara estadual, a democrata Sara Gideon — se nenhum dos candidatos ganhar a maioria dos votos para o primeiro lugar, o estado usará uma escolha por ranking no processo para determinar o vencedor.

No Arizona, os votos antecipados e as cédulas de ausentes, registrados alguns dias antes da votação de ontem, começaram a ser contados, e os resultados deveriam ser tornados públicos logo após o encerramento das urnas. Por sua vez, as cédulas de ausentes recebidas na segunda e terça-feira levarão alguns dias para serem tabuladas.

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Preparado para tudo 

Rosana Hessel 

Sarah Teófilo 

04/11/2020

 

 

A possibilidade de vitória do democrata Joe Biden nas eleições para a Casa Branca dividiu o Palácio do Planalto sobre como será o futuro relacionamento entre Brasil e Estados Unidos. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) teme pela perda de alinhamento ideológico com a saída do atual presidente Donald Trump, a ala mais pragmática do governo prega que o país deve se preocupar em manter os canais de comunicação com a Casa Branca não importa com quem vença o pleito presidencial.

 Ontem, o primeiro compromisso de Bolsonaro foi com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, para definir qual seria o discurso do Executivo no caso da eleição de Biden. Antes disso, contudo, sem esconder a sua preferência por Trump, o mandatário tomou uma atitude que surpreendeu até aliados, ao usar as redes sociais para dizer que as eleições norte-americanas corriam o risco de sofrer interferências externas que afetariam o resultado final das urnas. Bolsonaro ainda disse que o mesmo poderia acontecer em 2022 no Brasil. 

As declarações de Bolsonaro foram avaliadas como um receio de que a derrota do republicano possa ser o primeiro passo para a derrocada do presidente brasileiro daqui a dois anos, caso tente a reeleição. No restante do dia, o chefe do Executivo acabou aconselhado a esperar o fim das apurações para se manifestar. Ao fim da tarde, contudo, ele voltou a declarar apoio a Trump. “Se Deus quiser, ele ganha”, afirmou, ao conversar com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. 

Mais comedido e na contramão do que pensa o mandatário, o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) quer o Executivo federal aberto ao diálogo, mesmo que com Biden à frente dos Estados Unidos. Segundo ele, por mais que o democrata tenha caído em descrédito com Bolsonaro pelas críticas que tem feito à forma como o Brasil lida com questões ambientais, o país precisa se centrar na “relação de Estado para Estado, independente do governo, havendo simpatias ou não”. 

“Em relação se é Biden ou se é Trump, nós temos de fazer o certo. Porque esse é o nosso dever como governo do Brasil, fazer com que a lei seja obedecida. Se não vira uma bagunça. Política ambiental não muda, independente se é Trump ou Biden. Segue o baile”, afirmou o general.

Quebra de estigmas

Dessa forma, o governo já estuda formas de diminuir a resistência que a gestão de Bolsonaro enfrenta entre os democratas norte-americanos. Uma das saídas, segundo interlocutores do Palácio do Itamaraty, é que o Executivo use a influência do embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, junto aos deputados e senadores filiados ao partido de Biden. A ideia do Planalto é ir, aos poucos, quebrando os estigmas que foram criados sobre o presidente brasileiro. 

Especialistas em ciência política e relações internacionais avaliam que a postura do governo precisará de mudança, caso Biden vença a disputa, principalmente em relação à agenda ambiental: o Brasil deve sofrer pressão por parte do possível novo presidente norte-americano para apresentar resultados na preservação da Amazônia. Além disso, há a visão de que eventual vitória de Biden pode enfraquecer a ala ideológica do governo, principalmente os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e do Itamaraty, Ernesto Araújo.

 É o que diz o especialista em relações internacionais Wagner Parente, CEO da BMJ Consultores Associados, que ressalta ainda: “No curto prazo, a mudança no governo poderá atrapalhar e atrasar o diálogo bilateral do acordo de facilitação de comércio recém formalizado entre Brasil e Estados Unidos. Mas, no longo prazo, poderá fazer com que o governo brasileiro volte a priorizar a pauta ambiental, porque será preciso mudar o discurso atual. Isso que poderá ajudar na volta das conversas do tratado de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia.” 

Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Feliú diz acreditar que não deve haver grandes rupturas entre o Brasil e os EUA, pelo fato de a parceria ser longa e tradicional. No entanto, ressalta que Bolsonaro deve sofrer pressão relativa à política ambiental por parte do país do norte — somando-se, ainda, à pressão que já vem sendo sofrida pela Europa. “Não acredito que o Brasil vá ‘peitar’ os EUA, porque aí é a completa ‘venezuelização’ do Brasil; aí a política externa fecha de vez e a gente vira Venezuela”, diz. Para ele, a expectativa é que com uma eventual pressão de Biden, o Brasil mude a política doméstica em relação à Amazônia.

Agenda ambiental

Para o cientista político norte-americano David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), Bolsonaro precisaria demitir Salles e Araújo, visto que a manutenção deles nos seus respectivos cargos tornará insustentável para o Brasil manter boas relações com o segundo maior parceiro comercial (EUA). “Ernesto Araújo sucateou o Itamaraty, que era respeitado porque tinha diplomatas capacitados e que zelavam pela imparcialidade. O país tinha uma política externa independente. Desde 1964, eles não abraçavam o governo dos EUA como Bolsonaro fez, nem os militares”, destaca. 

O alinhamento ideológico de Bolsonaro com Trump tem ultrapassado os limites da diplomacia tradicional. Analistas lembram que o comércio bilateral entre Brasil e Estados Unidos não cresceu, apesar da bajulação de Bolsonaro a Trump. Pelo contrário. De acordo com dados do Ministério da Economia, as exportações brasileiras para os EUA encolheram 29,6% no acumulado de janeiro a outubro em relação ao mesmo período de 2019, com redução de US$ 34,7 milhões na média diária embarcada. Enquanto isso, as exportações para a China, maior destino dos produtos brasileiros registrou alta de 12,7% no acumulado até outubro na mesma base de comparação, com crescimento de US$ 31,8 milhões na média diária. 

Especialistas veem a vitória de Biden como um sinal de distensionamento entre Estados Unidos e China. A guerra comercial deflagrada por Trump não tem agradado ninguém. Uma trégua na chamada “Nova Guerra Fria” ajudaria a reduzir as incertezas no comércio global durante o processo de retomada da economia em um cenário pós-covid-19.

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Congresso aposta na agenda econômica 

Wesley Oliveira 

Luiz Calcagno 

04/11/2020

 

 

Com a vitória de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, o governo brasileiro seguirá o jogo. Por outro lado, se Joe Biden sobrepujar o rival republicano, a mudança do mandatário americano representará um enfraquecimento do bolsonarismo e forçará mudanças nas políticas de relações exteriores e de meio ambiente do governo Bolsonaro. É assim que os congressistas observam o movimento do xadrez eleitoral do país mais poderoso do mundo.

Para o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, senador Nelsinho Trad (PSD-MS), as eleições americanas trouxeram "surpresas históricas", mas que o Brasil estará preparado para a mudança, caso Biden seja confirmado como vitorioso. "Com o resultado totalmente imprevisível, apesar da divulgação sobre o favoritismo de Biden, acredito que o Brasil está preparado para mudar a estratégia diplomática e se mostrar com aspectos mais econômicos aos Estados Unidos, porque o nosso país tem potencialidades e é muito maior que qualquer ideologia política", disse.

Trad espera que, eleito, Biden promova mais críticas ao Brasil. "Acredito que, no começo, haverá sim críticas ao tratamento do Brasil com as ações ambientais, até porque o mundo lá fora não conhece a realidade da Amazônia. Por isso, a necessidade de reativar o Parlamento Amazônico e divulgar a nossa Amazônia, melhorar a comunicação do que realmente acontece lá", afirmou. Também do grupo bolsonarista, mas da Câmara, o deputado pesselista Bibo Nunes (RS) afirma que, mesmo se Biden vencer a corrida eleitoral, "a relação entre os países não mudará". "Os Estados Unidos, hoje, são um grande parceiro do governo Bolsonaro. É a maior nação do mundo em todos os sentidos. A expectativa de nossa parte é que Donald Trump saia vencedor. Mas, caso Biden saia vencedor, não teremos grandes problemas, somos uma das grandes nações do mundo", argumentou.

Nunes alertou que a soberania do Brasil será garantida, e que "a Amazônia é brasileira". Para ele, a vitória de Biden só mudará a relação entre presidentes. "Acredito que o relacionamento com os EUA não será abalado. O que pode modificar é o relacionamento pessoal entre os presidente. Mas, os países dependem entre si. Com o tempo, tudo se ajeita. O Biden é centro-esquerda e é do diálogo. Na OCDE, não teremos o mesmo apoio. Pode atrasar a nossa entrada, pois o Trump é parceiro de primeira hora. Mas é interessante para o Biden estender as mãos para o Brasil", avaliou.

Oportunidade
Na visão do líder do PP no Senado, senador Esperidião Amin (SC), a mudança de presidente nos Estados Unidos deveria ser um oportunidade do governo brasileiro adotar uma nova postura em relação ao comércio. "Devemos ser mais inteligentes e mais competitivos comercialmente. Somos concorrentes dos EUA em alimentos, agricultura e em uma série de coisas. A estratégia que deveríamos mudar era a da competitividade em relação ao valor de comércio", ponderou Amin.

Na visão do senador, uma possível reação de Trump contra o resultado das eleições poderá surtir como um "efeito dominó" pelo mundo. "Muitos países vivem uma polarização muito grande nos últimos anos. O Bolsonaro chegou a falar em fraude nas eleições em 2018, e agora Trump com o mesmo discurso lá nos EUA. A democracia não está conseguindo solucionar problemas antagônicos e esses discursos podem reverberar em problemas no futuro próximo", completou.

Já o líder da oposição na Câmara, deputado André Figueiredo (PDT-CE), prevê poucas mudanças entre Estados Unidos e Brasil com uma vitória de Biden. Ele acredita que Bolsonaro não deverá mudar o alinhamento automático com os EUA. E a mudança positiva, da saída de Trump do poder, na visão do parlamentar, se dará em escala global. "O resultado das eleições em termos de vitória do Biden será positivo para o mundo como um todo. Teríamos a derrota de um presidente que não tem tido apreço pelo meio ambiente, fez pouco caso com a pandemia e deixou a OMS. Então, o que podemos constatar é que quaisquer perspectivas negativas da derrota do Trump em relação ao governo Bolsonaro são fictícias", opinou.

Figueiredo critica o que considera uma relação desequilibrada entre as duas maiores economias do continente americano. "O que vimos na relação bilateral é uma devoção de Bolsonaro a Trump, e nenhuma contrapartida que seja positiva para o Brasil. Pelo contrário. Base de Alcântara, soja americana, sobretaxa no nosso aço e, agora, com a 5G, a tentativa de barrar a (empresa chinesa) Huawei de participar do leilão no país. Nada que tenha sido positivo para o Brasil. A China, nessa disputa, representa, na nossa pauta de exportações, R$ 53 bilhões, com superavit de R$ 28 bilhões, enquanto os EUA, R$ 15 bilhões, com deficit de R$ 1 bilhão. O Trump, nesses quase dois anos de relação de subserviência, não trouxe nada de positivo para o Brasil. O que temos clareza é que o governo terá de rever sua política ambiental e política externa. E OCDE é secundária", criticou.