Título: Endereço fantasma de concurso suspeito
Autor: Amorim, Diego
Fonte: Correio Braziliense, 27/03/2013, Economia, p. 9

Diante das denúncias de fraudes, empresa religa a luz de casa abandonada há mais de dois anos

A Fundação da Solidariedade (Fundaso), suspeita de organizar concurso fantasma para o Instituto Científico Educacional de Assistência aos Municípios (Iceam.gov), nunca existiu no local indicado por ela como sede. Desde as primeiras denúncias de irregularidades publicadas pelo Correio, os gestores da organizadora do certame, investigada pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal, se apressam numa força-tarefa para tentar transparecer legalidade. A seleção para o Iceam.gov já teria rendido entre R$ 3 milhões e R$ 5 milhões aos responsáveis pelas irregularidades.

A sede da Fundaso deveria funcionar na cidade goiana de Mambaí, próximo à divisa com a Bahia, a cerca de 300km de Brasília. A casa de alvenaria, de fachada verde, com telhas coloniais e piso de cerâmica branca, está localizada em uma rua de terra logo na entrada do município de 7,2 mil habitantes. A construção ficou pronta, segundo vizinhos, há pelo menos dois anos, mas jamais foi ocupada.

Na manhã de ontem, quando a equipe do Correio chegou ao local, técnicos da Companhia Elétrica de Goiás (Celg) religavam a energia da casa abandonada. Um dia antes, funcionários da empresa de saneamento do estado restabelecerem o abastecimento de água na residência de aproximadamente 100 metros quadrados de área construída. O terreno, com mato alto há meses, fora capinado igualmente no início desta semana.

A sede da Fundaso, também conhecida como Fundação Casa de Misericórdia, teria sido erguida, de acordo com moradores do município e informações da própria Prefeitura, com a ajuda do estado. A obra, orçada em cerca de R$ 78 mil, serviria como ponto de apoio para a população de baixa renda e desabrigados, com distribuição de cestas básicas e escritórios médicos para atendimento gratuito.

Concluída, até hoje a construção só recebeu a visita de crianças, que chegaram a arrombar a fechadura da porta para brincar no interior da residência. Nas paredes, rachaduras e rabiscos reforçam o abandono. Uma das duas luminárias da varanda foi arrancada junto a estrutura de gesso que a sustentava. No teto, há vários buracos deixados por telhas levadas pelo vento.

Poeira acumulada Moradores da rua confirmam que a proposta da Fundaso nunca saiu do papel. “Eu queria era morar nessa casa vazia, muito melhor que a minha”, disse o agricultor João Batista Alves dos Santos, 42 anos, que vive com a família no lote da frente. “Se funcionasse como prometeram, seria até bom. Mas ela sempre foi assim, abandonada”, emendou a vizinha Cleisilene Maria de Paula, 27.

O Correio encontrou ontem, em Mambaí, o homem de confiança de Samuel Pereira da Silva, que se apresenta como o gestor da Fundaso. “Ele me mandou um e-mail, pedindo para comprar algumas coisas para colocar lá (na sede da entidade)”, contou o servidor público Pedro Pereira, 62, pouco depois de fazer três orçamentos para mobiliar a casa — o mais barato saiu por R$ 2.034, incluindo mesas, cadeiras e telefone.

Samuel mora atualmente em Goiânia, mas tem familiares no município, onde é aguardado neste feriado de Páscoa. “Não creio que seja essa fundação, não. Porque ela não faz concurso. Pelo menos não é do meu conhecimento”, comentou Pereira, quando informado das denúncias envolvendo a entidade e a suspeita de estelionato por meio da seleção para o Iceam.gov. “A não ser que o Samuel não tenha me falado nada”, completou.

A Fundação da Solidariedade tem outra casa pronta e inabitada, na área rural de Mambaí, a 500m da GO-108, rodovia estadual que corta a cidade. A residência possui a mesma estrutura da sede, mas é maior e foi concluída um pouco antes. “Nunca funcionou nada, só eu que durmo aqui de vez em quando mesmo”, afirmou o senhor que toma conta do local, onde ontem a energia também foi restabelecida e o mato, aparado.

O Correio entrou na casa localizada na área rural. A sala é usada como depósito para materiais de irrigação agrícola. Em um dos cômodos, há uma cama de casal. Em outro, troféus de torneios de futebol acumulam poeira. “Desconheço o trabalho desta fundação nas duas residências”, declarou o prefeito de Mambaí, Javan Júnior, que fez questão de descartar qualquer ligação da entidade com a atual gestão.

"Se funcionasse como prometeram, seria até bom. Mas ela sempre foi assim, abandonada”

Cleisilene Maria de Paula, vizinha da casa apontada como sede da Fundaso