Título: Divisão na Justiça
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 27/03/2013, Mundo, p. 14

Em clima de tensão, a Suprema Corte dos Estados Unidos começa a debater os direitos aos casais do mesmo sexo. Juízes não chegam a acordo sobre a lei que bane esse tipo de união na Califórnia

O primeiro dia de debates históricos sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo terminou em uma profunda divisão da Suprema Corte dos Estados Unidos. E com uma inclinação à recusa da máxima instância judiciária norte-americana em não estender o direito constitucional do matrimônio gay para todos os 50 Estados do país. Se alguns dos nove juízes não esconderam a preocupação de que o assunto vem sendo discutido com demasiada rapidez, outros entraram em confronto com o advogado Charles J. Cooper, representante de simpatizantes da Proposição 8. Aprovada por meio de um referendo, a lei baniu o casamento gay da Califórnia, cinco anos atrás, depois que Kristin Perry e Sandra Stier conquistaram, nos tribunais, o direito de contraírem bodas.

Hoje, os magistrados debaterão os preceitos da Lei de Defesa do Casamento (Doma, em inglês), que define o matrimônio como uma união exclusivamente entre um homem e uma mulher. As mais recentes estatísticas apontam a existência de 120 mil casais homossexuais nos nove Estados que legalizaram o casamento.

Duas intervenções dos magistrados Anthony Kennedy e Samuel Alito deram uma mostra de que a Suprema Corte adotará a cautela. “Há substância para o ponto de que a informação sociológica é nova. Temos cinco anos de informação para pesar contra 2 mil anos de história”, declarou Kennedy. “Vocês querem que decidamos com base em uma avaliação sobre os efeitos de uma instituição mais nova que os celulares ou a internet?”, questionou Alito, ao citar o casamento homossexual.

Acreditava-se que o lobby da Casa Branca e de uma ala do conservador Partido Republicano a favor do matrimônio gay, além da inclinação da opinião pública, fosse o bastante para a Suprema Corte derrubar, ainda ontem, a Proposição 8. “Eu acho que os casais de mesmo sexo deveriam ser capazes de se casar. Essa é a minha posição pessoal”, afirmou Barack Obama, o primeiro presidente dos EUA a apoiar explicitamente a causa, em recente entrevista à tevê ABC News. Uma pesquisa realizada pelo Washington Post-ABC News mostra que 58% dos americanos consideram que o casamento gay deveria ser legal — em 2004, esse índice chegava a 41%.

“Foi uma audiência com uma tensão muito maior do que eu imaginava”, admitiu ao Correio, por telefone, Jennifer Drobac, professora de direito da Indiana University, em Indianapolis. Segundo ela, a Suprema Corte dos EUA pode se recusar a emitir uma opinião sobre a constitucionalidade da Proposição 8. “Nesse caso, a Suprema Corte da Califórnia vai se levantar para invalidar essa lei, o que tornará possível que os homossexuais se casem no Estado”, explicou. Um cenário que estimularia outras unidades da Federação a legislarem em causa própria, sem uma influência da Proposição 8. “O casamento seria considerado um direito fundamental no país. No entanto, é mais provável que os nove juízes mantenham a legalidade das uniões gays nos Estados onde elas já existam, mas eliminem os benefícios federais aos casais de mesmo sexo”, acrescentou.

Drobac alerta que o futuro de crianças educadas por um casal homossexual tem sido fonte de polêmica na Suprema Corte. “Nos EUA, gays podem ter filhos por meio da medicina reprodutiva assistida. Suponhamos que duas mulheres se casem em Massachusetts, tenham filhos e se mudem para Indiana, que não reconhece o seu casamento. Seus filhos perderiam todos os direitos e estariam numa situação de risco. Eles seriam considerados órfãos legais apenas porque os pais se mudaram de um Estado para outro”, disse a estudiosa.

Advogado e professor de direito na Universidade da Califórnia-Los Angeles (Ucla), David Codell explicou que nenhum dos nove juízes pareceu ter o desejo de legislar de modo a demandar que todos os 50 Estados norte-americanos autorizem o casamento gay. “A maioria dos magistrados entende que a Constituição exige dos Estados a autorização para a união de casais do mesmo sexo, mas não acha que o caso envolvendo a Proposição 8 seja o veículo correto para isso”, afirmou à reportagem, por e-mail.

Doma

“O caso de hoje (ontem) apresenta muitas questões jamais confrontadas pela Suprema Corte, e as partes mostraram razões possíveis para a invalidação da Proposição 8”, explicou Codell. O especialista da Ucla acredita que a audiência sobre a Doma destacará ainda mais as divergências dentro da Justiça norte-americana. Por sua vez, Drobac admite a hipótese de a Corte pode validar a Doma, uma forma de reforçar o poder do Congresso. “Mas não creio que isso acontecerá, pois nove Estados e o Distrito de Columbia permitem o casamento gay, mas impedem que essas pessoas obtenham direitos federais. Isso tem causado muita confusão e problemas”, afirmou. “Eu acho que a Doma será declarada inconstitucional, o que permitiria o acesso dos casais homossexuais aos benefícios federais.”

Os argumentos dos juízes Como seis dos nove magistrados da Suprema Corte se posicionaram durante o debate de ontem

» Stephen Breyer Afirmou que existem várias pessoas que se casam e que não podem ter filhos. De acordo com ele, a procriação e a educação dos filhos são fundamentais ao interesse do Estado pelo casamento. “Pegue um Estado que permita a adoção. Lá, qual seria a justificativa para dizer não ao casamento gay?”, questionou.

» Anthony Kennedy Considerado o fiel da balança numa Suprema Corte dividida, questionou até que ponto o tema do casamento gay deveria ser levado ao tribunal e demonstrou o receio de a Justiça entrar em “águas desconhecidas”, ao abordar um tema que divide os Estados. “Temos cinco anos de informação para pesar contra 2 mil anos de história”, afirmou.

» Samuel Alito De acordo com ele, os Estados não estão limitados pela separação de poderes da Constituição. O juiz lembrou que o casamento tradicional existe há milhares de anos e que a união homossexual é recente. “Querem que decidamos com base na avaliação sobre os efeitos de uma instituição mais nova que os celulares ou a internet?”

» John Roberts O chefe da Suprema Corte comparou os direitos da união gay a forçar uma criança a chamar alguém de “amigo”. “Se você disser a uma criança que alguém precisa ser amigo dela, suponho que você possa forçá-la a dizer ‘este é meu amigo’, mas isso muda a definição do que é ser amigo. É o mesmo que os adeptos da Proposição 8 fazem aqui.”

» Elena Kagan Desafiou o advogado Charles Cooper, representante dos proponentes da Proposição 8. “Como pensamos que o foco do casamento realmente deveria ser a procriação, nós não vamos dar licenças de casamento mais a quaisquer casais cujas pessoas tenham mais de 55 anos. Isso seria constitucional?”, perguntou.

» Antonin Scalia Confrontou o advogado Theodore Olson, que argumentava a favor da derrubada da Proposição 8, a lei que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Califórnia. “Quando se tornou inconstitucional excluir casais homosssexuais de se casarem? 1791? 1868, quando a 14ª Emenda foi adotada?”, perguntou.

Uma orientação para o mundo “O fim da Proposição 8 abriria precedente de orientação a outros países. Mas a Suprema Corte dos EUA não está ligada a outras nações soberanas. O fato de os juízes debaterem temas complexos não forçará uma nação a mudar suas leis.” Jennifer Drobac, professora de direito da Indiana University

“Muitas nações têm olhado para as decisões da Suprema Corte dos EUA em relação à igualdade, a fim de terem uma orientação. Mas outros países tomaram a dianteira nos debates. Temos a chance de aprender com experiências.” David Codell, professor de direito na Universidade da Califórnia-Los Angeles