Correio braziliense, n. 20984, 05/11/2020. Mundo, p. 14

 

Salles e Araújo na mira

Augusto Fernandes 

05/11/2020

 

 

Com o cenário eleitoral dos Estados Unidos apontando para uma vitória de Joe Biden contra Donald Trump na corrida pela Casa Branca, o governo brasileiro avalia como deve se comportar com o país norte-americano no caso de o candidato do partido Democrata ser oficialmente declarado como o novo presidente dos EUA. Por um lado, o Planalto está mais do que ciente de que as cobranças de Biden contra a política ambiental brasileira continuarão fortes. Por outro, sabe que não poderá cortar laços com a maior potência mundial por uma eventual derrota de Trump. Ante essa situação, o presidente Jair Bolsonaro pode promover mudanças no Executivo, em nome do pragmatismo político, e abrir mão de ministros da “ala ideológica”.

Interlocutores do governo ouvidos pelo Correio dizem que os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles, poderiam perder a chefia das pastas ou serem realocados para cargos de segundo escalão. Apoiadores declarados do presidente republicano, ambos auxiliares de Bolsonaro, acumulam fortes críticas dentro e fora do Brasil, seja pelo desmatamento recorde na Amazônia e no Pantanal, seja por uma política externa que levou o Brasil à condição, nas palavras de Araújo, a “pária internacional”.

Tirar Salles e Araújo dos holofotes seria importante para o Palácio do Planalto construir uma ponte com Biden, em especial no quesito meio ambiente. O democrata ameaçou “congregar o mundo” contra o Brasil para garantir que a Amazônia seja preservada. Desde o início do ano, o bioma foi atingido por 94.169 queimadas. Esse registro é 5% superior ao que foi contabilizado em 2019 inteiro, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 89.176 pontos de calor na Floresta Amazônica.

Assessores de Bolsonaro reconhecem que o país pode ficar mais isolado, caso não tente se adequar ao perfil de um presidente norte-americano que não mantenha um alinhamento ideológico com o mandatário brasileiro. Dessa forma, a estratégia é encontrar a melhor maneira de Bolsonaro sinalizar a Biden que estará disposto a iniciar um diálogo.

As mudanças, contudo, não devem ser imediatas. O Executivo ainda espera a confirmação do resultado oficial. Se as urnas apontarem vitória de Biden, Bolsonaro deve aguardar até o primeiro trimestre do ano que vem para confirmar uma reforma ministerial. Enquanto isso, ele segue torcendo por Trump.

Ontem, o presidente brasileiro comentou a apoiadores que eventual vitória de Biden pode abrir espaço para uma interferência do governo norte-americano na política do Brasil. “O candidato democrata, em duas oportunidades, falou sobre a Amazônia. É isso que vocês tão querendo para o Brasil? Aí sim uma interferência de fora pra dentro”, alertou o mandatário.

Mais uma vez, Bolsonaro comentou que espera a vitória de Trump. O presidente evitou falar em derrota do republicano e disse que vai aguardar pelas decisões da Suprema Corte norte-americana. “Parece que foi judicializado o negócio lá, né. Um estado ou outro. Esperar um pouquinho. A esperança é a última que morre”, lembrou o presidente.

Reacomodação

Segundo cientistas políticos, a eleição de Biden deve impactar o Executivo brasileiro, em especial porque o Itamaraty tem sido pautado por um completo alinhamento a Trump. Diante disso, será imprescindível que o governo mude a forma de fazer política com o restante do mundo. “Bolsonaro terá de se acomodar à nova realidade. Será muito diferente com Biden, pois ele perderá o acesso privilegiado à Casa Branca. Então, há uma força no gabinete e, até certo ponto, na própria vice-presidência, de que é necessário ter uma boa relação com os EUA. Portanto, é provável que ele faça um gesto de acomodação. A mudança mais lógica seria com Araújo e Salles, que são os ministros mais desprestigiados no exterior”, analisa Eduardo Viola, professor titular de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

O cientista político Enrico Monteiro, da Queiroz Assessoria Parlamentar e Sindical, acrescenta que “a ideologia nos deixou isolados do mundo” e que Bolsonaro precisará mudar essa postura para não deixar o Brasil “completamente à margem do comércio internacional”. De acordo com ele, “isso seria péssimo para uma retomada econômica”. “Acho que a vitória do Biden vai trazer algumas reflexões: qual é o nosso posicionamento em relação a comércio internacional e qual é a nossa posição enquanto país com o maior potencial de economia verde do mundo e maior produtor do agronegócio mundial. Teremos a chance de fazer discussões que, até o presente momento, não ocorreram porque houve alinhamento automático com o Trump. Se Biden for confirmado, ele vai propor para os parceiros comerciais uma série de movimentos, sobretudo na área ambiental, aos quais o Brasil precisará se adequar.”

“Brasil não tem nada a esconder”

O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou, ontem, que as relações entre os Estados Unidos e o Brasil precisam continuar, independentemente do resultado das eleições. De acordo com o general, cada nação tem seus interesses e o diálogo é institucional. “Nosso relacionamento é de Estado. Independe do governo que está lá. É claro que o presidente Trump é mais próximo do presidente Jair Bolsonaro. Cada nação tem seus interesses”, disse Mourão, ao embarcar com uma comitiva de diplomatas para conhecer as ações de combate do governo federal ao desmatamento na Amazônia. Quanto à viagem, Mourão disse que “o Brasil não tem nada a esconder” e que o país reconhece suas dificuldades na área ambiental. (Renato Souza)

Voto e mobilização

“A polarização política tem o efeito de mobilização dos eleitores. Os democratas saíram de casa e os idosos votaram contra o Trump pelos correios, devido à gestão dele durante a pandemia. No entanto, por outro lado, o eleitor fiel a Trump, sentindo-se desamparado por outros governos, garantiu a ele vitórias importantes como na Flórida, onde o republicano teve um voto maciçamente masculino e branco. Embora a eleição norte-americana tenha impacto no Brasil, a vitória de Trump não acrescenta em algo prático, porque quem tem o maior impacto sobre o Brasil é o próprio Brasil. Temos que fazer o dever de casa, e o governo brasileiro deve realizar diálogos e levar adiante discussões importantes de melhorias deste governo”.

Creomar de Souza, fundador da Consultoria Política Dharma

É melhor não brigar

“Esta é uma eleição histórica porque ocorre no meio de uma pandemia, com um voto antecipado robusto e significativo, além de ter um dos maiores comparecimentos para votação do período recente, considerando que, nos EUA, a votação é facultativa. No Brasil, a eleição norte-americana exerce um poder simbólico de fortalecimento do posicionamento ideológico. Bolsonaro foi eleito na mesma onda conservadora de Trump, e uma eventual vitória do republicano terá um efeito revigorante neste movimento. Não acredito que a vitória de Biden trará muitas consequências. Os dois países são grandes parceiros econômicos, e o Brasil não vai brigar com a China e os Estados Unidos ao mesmo tempo. Na prática, não altera muito quem ganha ou perde”.

Lúcio Rennó, professor do Instituto de Ciência Política da UnB

Sequência de erros

“A postura de Trump com relação à pandemia, acrescida da retórica dele em relação à Europa e à Otan, além do desprezo dele em relação a alguns assuntos — como a ocasião em que ele se recusou a apertar a mão de Angela Merkel na Casa Branca —, foram fatores que o prejudicam agora. Além disso, o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) é pró-Biden, ainda que ele não seja o candidato dos sonhos para esse grupo. E caso Biden seja o vencedor, tanto EUA quanto Brasil devem ter bom senso para que a soberania do Brasil seja respeitada; para que o governo brasileiro reconheça os equívocos na área ambiental e mude de atitude a respeito disso.”

João Carlos Souto, professor de Direito Constitucional do Centro Universitário do DF (UDF)

O olhar do investidor

“Os Estados Unidos deram mostra de que o candidato favorito é Joe Biden. Apesar da política de Trump, favorável ao mercado interno americano, os investidores temem a guerra com a China e a beligerância com a Europa. No Brasil, isso acaba tendo um certo reflexo. Não podemos esquecer que o nosso maior parceiro comercial são os Estados Unidos — para efeito de importação e exportação, somados. A China é a maior compradora do Brasil. Qualquer movimento dos americanos afeta diretamente o Brasil. O mercado local olha esse termômetro. Mas, obviamente, existe um componente interno (no Brasil) que está afetando mais do que propriamente a eleição americana. Juntando esses dois fatores, temos altas elevadas nas Bolsas e uma volatilidade muito grande. E os espectadores, aqueles que estão com dinheiro, aguardam os passos corretos para fazer os seus investimentos.”

César Bergo, presidente do Conselho Regional de Economia e diretor da Corretora OpenInvest

Efeito covid

“Se não tivesse ocorrido a pandemia, Trump teria uma vantagem extremamente expressiva. Mas a forma como ela foi tratada pelo presidente Trump trouxe prejuízo, junto com o viés econômico, que era a grande locomotiva que poderia colocá-lo bem à frente de Joe Biden. Com uma vitória de Biden, pode ocorrer instabilidade entre EUA e Brasil em um primeiro momento. Mas ambas nações são grandes parceiras históricas, trata-se de uma parceria de Estado, não de governo. Do ponto de vista comercial, não haverá uma catástrofe.”

Rodrigo Badaró, conselheiro federal da OAB e especialista em política dos Estados Unidos

Futuro da política

“O número oito é muito importante na história mundial. Em 1918, após a Revolução Russa, o mundo tinha duas ideologias: de um lado o liberal; e de outro, o comunismo. Em 1938, o mundo teve três para escolher, com o nazismo também. A partir de 1988, o socialismo cai. É só estudar a China que dá para ver que aquelas teorias não se encaixam muito. Depois de 2008, nem o liberalismo explica mais nossa nação. Eu creio que, em 2004, houve duas mudanças significativas: a internet, que ficou mais visível a todos, e o smartphone. Nessa junção, mudamos o DNA da humanidade e, com isso, todas as questões que estamos falando talvez sejam velhas demais. Em outras palavras, quem Bolsonaro vai enfrentar em 2022, talvez a gente nem conheça ainda.”

Rafael Favetti, advogado e cientista político