Título: Coreia do Norte diz estar em guerra
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 30/03/2013, Mundo, p. 15

Pyongyang afirma que todas as questões com o vizinho serão tratadas em condições de confronto. Multidão marcha em apoio ao ditador Kim Jong-un e promete pegar em armas

“A partir de agora, as relações intercoreanas estão em estado de guerra, e todas as questões entre as duas Coreias serão tratadas sob o protocolo de guerra.” O comunicado foi divulgado, por volta das 9h de hoje (21h de ontem em Brasília), por todos os órgãos do governo da Coreia do Norte. “A situação que prevaleceu por longo tempo, na qual a Península Coreana não estava nem em guerra e nem em paz, acabou”, acrescenta a nota. O texto adverte que qualquer provocação militar próxima às fronteiras terrestres ou marítimas entre o Norte e o Sul levará a “um conflito em grande escala e a uma guerra nuclear”. As duas Coreias estão tecnicamente em guerra desde o conflito de 1950-1953, encerrado com um armistício. Até o fechamento desta edição, Seul não havia se pronunciado sobre a declaração.

O anúncio do “estado de guerra” acontece cerca de 24 horas após dezenas de milhares de norte-coreanos — soldados, veteranos, trabalhadores e estudantes —jurarem lealdade ao ditador, Kim Jong-un, em uma grande marcha na Praça Kim Il-sung, no centro de Pyongyang. “Vamos pegar em armas e bombas por nosso respeitado líder Kim Jong-un”, gritaram, em uníssono, os manifestantes. “Morte aos Estados Unidos imperialistas” e “Varreremos do mapa os agressores dos Estados Unidos” também foram frases pronunciadas pelos norte-acoreanos.

Além do protesto, que durou cerca de 90 minutos, a agência de notícias estatal KCNA divulgou imagens de Kim assinando uma ordem de preparação dos mísseis para um eventual ataque contra bases norte-americanas no Pacífico e contra o próprio território continental dos Estados Unidos. Ao fundo, podia ser visto um mapa com supostos alvos assinalados: sul da Califórnia, Washington, Havaí e Austin (Texas), além do Havaí e de Guam. Kim prometeu “reduzir tudo a cinzas em um único ataque”.

A ameaça mereceu resposta imediata da Casa Branca e um pedido de comedimento à Coreia do Norte, por parte da Rússia, aliado do regime comunista. “Nossas manobras militares com a Coreia do Sul deveriam ser uma prova suficientemente clara para a comunidade internacional e para os norte-coreanos de que temos capacidade e vontade de proteger nossos interesses na região”, assegurou Josh Earnest, vice-porta-voz da Presidência dos EUA. A crise envolvendo a insistência de Pyongyang em manter o programa nuclear se agravou depois que dois bombardeiros norte-americanos B-2 Spirit lançaram munições artificiais contra um alvo em território sul-coreano. Com autonomia de voo de 11 mil km, as aeronaves têm o potencial de carregar ogivas atômicas.

Em uma surpreendente mudança de postura, o ministro russo das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, recomendou a Pyongyang baixar o tom da retórica. Também pediu a norte-coreanos e norte-americanos que “não exercitem seu músculo militar”. “Podemos perder o controle da situação, que está entrando na espiral de um círculo vicioso”, alertou o chanceler de Moscou. “Estamos preocupados com o fato de que sejam tomadas ações unilaterais, que consistam em intensificar as atividades militares em relação à Coreia do Norte, paralelamente à reação apropriada do Conselho de Segurança da ONU e à reação coletiva da comunidade internacional”, acrescentou Lavrov. A Rússia pretende que os países da Península Coreana, além dos EUA, “não utilizem a situação atual para alcançar os objetivos geopolíticos na região por meios militares”, concluiu.

Apelo ao diálogo O governo da China também defendeu “o rebaixamento da tensão” na Península Coreana. “Esperamos que as partes trabalhem de forma conjunta para pressionar e conseguir uma mudança de tendência da tensa situação atual”, declarou Hong Lei, porta-voz do Ministério de Assuntos Exteriores, em Pequim. Em entrevista ao Correio, por e-mail, o historiador chinês Yong Chen, professor da Universidade da Califórnia-Irvine, descartou um confronto direto entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte. “Com frequência, ditadores são blefadores na política externa. Kim Jong-un segue o padrão do pai, Kim Jong-il, e se insere nesse plantel”, comentou. “Eu não creio que ele seria louco o bastante para atacar os Estados Unidos. Ele teria muito a perder: poder, prestígio e dinheiro”, emendou. De acordo com ele, existe o risco real de o Ocidente não ter coragem de confrontar o blefe de Kim e tentar apaziguá-lo. “Isso o fortaleceria a fazer demandas e blefes ainda maiores”, explicou.

Os prováveis cenários

Os desdobramentos da crise na Península Coreana, de acordo com vários especialistas:

Ataque aos EUA ou a interesses americanos Ao contrário do que Kim Jong-un ameaça, a Coreia do Norte não tem capacidade bélica para realizar um ataque nuclear contra o território norte-americano. Mísseis Scud poderiam atingir bases americanas na Coreia do Sul. No entanto, tal ação seria suicida e provocaria uma resposta devastadora dos Estados Unidos.

Ataque à Coreia do Sul A capital sul-coreana, Seul, está vulnerável a uma ofensiva de Pyiongyang, que poderia disparar mísseis a partir de seu território ou de seus navios. Mas um ataque provocaria uma pesada retaliação, que colocaria em risco a vida de cidadãos chineses que moram na Coreia do Sul. Isso também causaria um mal-estar entre China e Coreia do Norte, tradicionais aliados.

Teste nuclear ou de mísseis Especialistas admitem que a Coreia do Norte tem a pretensão de realizar um novo teste nuclear, uma forma de dissuasão e de barganhar ajuda financeira ou capital político. No entanto, um teste nuclear seria arriscado demais: um fracasso, ante a dificuldade técnica, representaria um desastre para Pyongyang.

Retorno às negociações A retomada do diálogo com China, EUA, Coreia do Sul, Japão e Rússia parece pouco provável. Desde 2009, as negociações estão interrompidas. Pyongyang tem realizado uma série de ações confrontando a comunidade internacional. Analistas creem que seja possível uma conversa bilateral envolvendo as duas Coreias.

[FOTO3] Ceticismo “Não creio que a Coreia do Norte começaria uma guerra total contra o Sul. Os norte-coreanos poderiam atacar uma ilha. O principal propósito disso é a consolidação do poder, por parte de Kim Jong-un e dos militares. Não acho que eles se importem sobre esperança de negociações, nesse momento. Levará alguns anos para Kim obter o controle absoluto de seu país. As coisas poderão mudar depois disso.”

Yong Chen, professor de história da Universidade da Califórnia-Irvine