Valor econômico, v. 21, n. 5138, 30/11/2020. Brasil, p. A2

 

Com silêncio de Bolsonaro, vitória de Biden vira “tabu” no Planalto

Fabio Murakawa

Daniel Rittner

30/11/2020

 

 

Presidente só deve cumprimentar eleito nos EUA após a oficialização de sua vitória, em 14 de dezembro

O presidente Jair Bolsonaro só deve cumprimentar o democrata Joe Biden após a oficialização de sua vitória nas eleições americanas, com a reunião do colégio eleitoral, em 14 de dezembro, segundo uma fonte graduada do governo. Ontem, após votar no Rio, ele disse sem provas que “houve muita fraude” na eleição americana.

“A imprensa não divulga, mas eu tenho minhas fontes de informações, não adianta falar para vocês, não vão divulgar, de que realmente teve muita fraude lá, isso ninguém discute”, afirmou. “Se ela foi suficiente para definir um ou outro, eu não sei. Eu estou aguardando um pouco mais [para me manifestar], que lá seja decidido pelos Estados, pela Justiça Eleitoral deles e quem sabe pela Suprema Corte no final”, disse, embora não haja Justiça Eleitoral nos EUA.

No entorno de Bolsonaro, o comentário corrente é que não há nenhum tipo de contato com representantes de Biden. Mas poucos se atrevem até mesmo a falar sobre o assunto, que virou uma espécie de “tabu” tanto entre fontes palacianas como da diplomacia.

Embora seja consenso no Palácio do Planalto e no Itamaraty que a derrota de Trump é irreversível, não há sinal de visitas ou conversas oficiais com a equipe democrata. Dado o alinhamento de Bolsonaro com Trump, o vazamento de qualquer gesto de aproximação pode ser visto como afronta e é tratado como “tema muito sensível”.

Enquanto isso, o governo segue em total sintonia com o atual ocupante da Casa Branca. No início do mês, o subsecretário de Crescimento Econômico, Energia e Meio Ambiente, Keith Krash, veio ao país e conseguiu arrancar do Itamaraty declaração de apoio à iniciativa “Clean Network”, desenhada para minar a Huawei, fabricante chinesa de equipamentos para o 5G. Ele foi recebido pelo chanceler Ernesto Araújo e pelo ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

Dois congressistas democratas reeleitos em novembro são tidos como excelentes contatos da Embaixada do Brasil em Washington e possíveis pontes com a equipe de Biden. Um deles é o nova-iorquino Gregory Meeks, que co-preside o Brazil Caucus - espécie de frente parlamentar - no Congresso americano. Ele já visitou o país algumas vezes e se interessa especialmente pela Bahia. Relaciona-se bem com a comunidade de imigrantes brasileiros em Nova York.

Ex-funcionária do Departamento de Defesa e reeleita pela Flórida, Stephanie Murphy foi a única integrante democrata do Comitê de Orçamento e Tributos que não assinou carta contra Bolsonaro em junho. Há cinco meses, 24 congressistas do partido na principal comissão na Câmara dos Representantes enviaram ofício ao USTR (escritório comercial da Casa Branca) expressando “fortes objeções” à busca de acordos ou parcerias econômicas entre Brasil e EUA.

Um dos principais auxiliares de Biden para a América Latina é Juan González, que já foi conselheiro do então vice-presidente para a região, entre 2015 e 2015. Ele também foi chefe de gabinete do secretário-assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, Arturo Valenzuela, na gestão Barack Obama.

A antipatia entre Bolsonaro e Biden remonta à campanha eleitoral americana. No fim de setembro, em um debate com Trump na TV, o democrata propôs a criação um fundo de US$ 20 bilhões para a preservação da Amazônia. E disse que o Brasil sofrerá “consequências significativas” caso a destruição da floresta não cesse.

Em 11 de novembro, com o democrata já eleito, o presidente se referiu a Biden como “grande candidato a chefia de Estado”, em discurso no Planalto. Mas a fala gerou uma febre de memes na internet depois que ele insinuou que poderia ir à guerra contra os EUA.

“E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas a diplomacia não dá [...]. Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão, não funciona”, disse Bolsonaro.

Não é a primeira vez que contatos diplomáticos com a equipe de um presidente eleito são travados por “sensibilidades”. Quando o kirchnerista Alberto Fernández venceu as eleições argentinas de 2019, Araújo vetou aproximações da Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Toda a interlocução foi concentrada em Brasília. Bolsonaro e Fernandes não se encontraram pessoalmente até hoje.