Correio braziliense, n. 20987, 08/11/2020. Mundo, p. 12/13

 

"É hora da cura"

Rodrigo Craveiro

08/11/2020

 

 

Quarenta e oito anos depois de se tornar o senador mais jovem dos Estados Unidos, Joseph Robinette Biden Jr. — ou Joe Biden — fez história, ontem, ao derrotar o republicano Donald Trump e ao ser eleito o 46º presidente (o mais velho e o segundo católico) do país. Aos 77 anos, o primeiro candidato a vencer um presidente no cargo desde 1992 também é o mais bem votado em 233 anos de democracia, com 74,4 milhões de votos. Após duas tentativas (1988 e 2088), o democrata chega à Casa Branca com a promessa de construir pontes, ao invés de erguer muros. Às 22h40 (hora de Brasília), Biden fez o discurso da vitória, em Wilmington (Delaware), onde mora. “O povo dessa nação fez-se ouvir. Nos deu uma clara vitória, uma vitória convincente. Com o maior número de votos jamais dados na história da nação. (…) Amanhã, será um dia melhor”, prometeu. “Eu garanto que serei um presidente que não quer dividir, mas unificar. Que não existirão estados vermelhos e azuis, mas os Estados Unidos da América. (…) Eu busquei esse cargo para resgatar a alma da América, para reconstruir a espinha dorsal deste país.”

Biden homenageou a esposa — “Eu sou o marido da Jill, e não estaria aqui sem o amor dela” — e adotou um tom conciliador. “É hora de abandonar a retórica dura, de reduzir a temperatura, de vermos e escutarmos uns aos outros novamente e de fazermos progresso”, disse. “Esse é o tempo de curar a América. Essa campanha acabou. A América nos convocou para comandarmos as forças da decência, da justiça, da ciência e da esperança. Vamos acabar com a demonização da América. Vamos fazer isso aqui, e agora”, declarou o democrata. Ele anunciou que, amanhã, nomeará uma comissão de cientistas como conselheiros de transição e avisou que não poupará esforços no combater à pandemia da covid-19, que matou 237 mil americanos.

A senadora Kamala Harris (leia na página 16), a primeira mulher negra e de ascendência indiana a conquistar a vice-presidência, subiu ao púlpito antes. “Quando a nossa democracia esteve no voto, com a alma americana correndo risco, (…) vocês asseguraram um novo dia para a América”, disse. A escolha de Kamala para a chapa foi estratégica para atrair os votos das mulheres e dos afro-americanos. Trump não reconheceu a derrota e prometeu ir aos tribunais.

“Os observadores não puderam ficar nas salas de apuração. Eu venci a eleição, tive 71 milhões de votos legais. Coisas ruins ocorreram que nossos observadores não tiveram permissão para ver. Nunca aconteceu antes. Milhões de cédulas foram enviadas pelos correios sem que as pessoas nunca tivessem pedido por elas”, escreveu o magnata, com as letras maiúsculas, no Twitter, que censurou a mensagem. “71 milhões de votos legais. O maior número para um presidente no cargo!”, insistiu Trump, que deixa um legado sombrio (leia na página 13).

“Honrado”

Pouco depois de a mídia dos EUA divulgar sua vitória na Pensilvânia (20 delegados) e em Nevada (6 delegados), no início da tarde, Biden pronunciou-se, pela primeira vez como presidente eleito, também pelo Twitter. “América, estou honrado por terem me escolhido para liderar nosso grande país. (…) Prometo a vocês: serei um presidente para todos os americanos — quer vocês tenham votado em mim, ou não”, escreveu. Em outro comunicado a simpatizantes, Biden disse que recebeu a notícia com “honra e humildade”. Trump jogava golfe na Virgínia. Ao retornar à Casa Branca, foi recebido com gestos obscenos.

Até o fechamento desta edição, Biden tinha obtido pelo menos 279 delegados dos 270 necessários para ganhar a Casa Branca (290, segundo projeção da Associated Press), enquanto Trump reunia 214. Com máscaras, milhares de pessoas tomaram as ruas das principais cidades do país para festejar (leia na página 14). Kamala interrompeu uma corrida e registrou, em vídeo, o momento em que parabenizou o companheiro de chapa, por telefone. “Nós conseguimos! Nós conseguimos, Joe! Você será o próximo presidente dos Estados Unidos!”, disse.

O ex-presidente Barack Obama conversou com Biden e com Kamala, por telefone, e felicitou o seu ex-vice. “Eu não poderia estar mais orgulhoso de parabenizar nosso próximo presidente, Joe Biden, e nossa próxima primeira-dama, Jill Biden”, comentou.

Alan Dershowitz, historiador político da Universidade de Harvard e ex-advogado de Trump no processo de impeachment, afirmou ao Correio que Biden “será uma força unificadora em um tempo de grande divisão nos EUA”. “Espero que ele estenda as mãos aos simpatizantes de Trump, ao elogiar coisas boas que o republicano fez, especialmente no Oriente Médio.” Keith E. Whittington, professor de política da Universidade de Princeton, explicou que a noção de um presidente para todos os norte-americanos costumava ser uma suposição padrão. “Nos anos recentes de extrema polarização, isso tem sido uma promessa difícil de sustentar e de crer. Não é surpreendente que Biden tente tornar esse compromisso explícito. A nação segue dividida.”

“Já foi dito que o eleitorado americano é o deus da recompensa e da vingança. Isso é especialmente verdade quando um presidente concorre à reeleição”, disse ao Correio Charles Stewart III, cientista político do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Segundo ele, a derrota de alguém que agiu “acima da política”, que teve êxito em empurrar a agenda legislativa e que governou sob uma boa economia representa “o julgamento das habilidades de liderança de Trump”. “Biden gerenciará a pandemia de modo muito melhor e trabalhará para ser uma figura de construção de consenso. Ele ajudará o país a retormar a ‘política do normal’.”

Durante a campanha, Biden esboçou as prioridades para os 100 primeiros dias de governo: o combate à covid-19, a revitalização da economia, o retorno ao Acordo de Paris contra mudanças climáticas, uma reforma judicial e um pacote de reforma migratória. “No combate ao aquecimento global, Biden vai revigorar a Agência de Proteção Ambiental. Nas relações exteriores, deverá se destacar, junto a aliados, como um parceiro e um líder”, disse Stewart. Para James Naylor Green, historiador político da Brown University (em RhodeIsland), o maior desafio de Biden será aprovar a legislação, se não conseguir maioria no Senado. “O primeiro obstáculo dele será lidar com a covid-19 e a com a economia”, previu.

Eu acho...

“Biden vai revigorar o compromisso da América com os valores democráticos, na condução das relações exteriores. Ele se recusará a apoiar as ambições autocráticas de demagogos como Jair Bolsonaro. Também reafirmará o compromisso dos Estados Unidos com os princípios centrais da dignidade humana.”

Bruce Ackerman, professor da Faculdade Sterling de Direito e de Ciência Política da Universidade de Yale, em New Haven (Connecticut)

"Serei um presidente para todos os americanos — quer vocês tenham votado em mim, ou não”

Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, na primeira manifestação após a vitória, pelo Twitter

“Eu garanto que serei um presidente que não quer dividir, mas unificar”

Biden, no discurso da vitória, em Wilmington (Delaware)

“A América nos convocou para comandarmos as forças da decência, da justiça, da ciência e da esperança”

Biden, em Wilmington

“Vocês enviaram uma mensagem clara: escolheram esperança e unidade, decência, ciência e verdade”

Kamala Harris, vice-presidente eleita dos EUA

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No berço da democracia 

08/11/2020

 

 

A conquista da Pensilvânia por Joe Biden teve sabor de vitória pessoal, mas também forte simbolismo. Além de ser o estado onde o presidente eleito nasceu — na cidade de Scranton, em 20 de novembro de 1942 —, a Pensilvânia é considerada o berço da democracia norte-americana. Foi na Câmara Estadual da Pensilvânia, em Filadélfia, que houve a assinatura da Declaração de Independência dos Estados Unidos em relação à Grã-Bretanha, em 1776, e onde adotou-se o primeiro rascunho da Constituição, em 1781.

O fato de Biden ter vencido com votos da Pensilvânia torna-se icônico. Ao perceber que a Pensilvânia poderia ser o estado que inclinaria os votos a seu favor, Trump ameaçou levar os resultados da eleição à Suprema Corte meses antes, lembrou ao Correio James Green, historiador político da Brown University (em RhodeIsland). O presidente republicano também engajou-se em uma campanha difamatória contra a Filadélfia, ao afirmar que os políticos da cidade eram corruptos e roubariam as eleições. Na iminência da derrota, menosprezou a democracia de seu próprio país. O triunfo de Biden na Pensilvânia silenciou Trump e reforçou o peso da Constituição mais antiga do mundo. (RC)

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Uma herança de conflitos 

Jorge Vasconcellos 

08/11/2020

 

 

Donald Trump acaba de entrar para a pequena galeria dos presidentes não reeleitos nos Estados Unidos. Desde a Segunda Guerra Mundial, apenas dois inquilinos da Casa Branca não conseguiram receber a confiança dos americanos para exercer um novo mandato: Jimmy Carter e George H.W. Bush. Os quatro anos da era Trump, porém, foram suficientes para deixar, talvez por um longo período, marcas profundas no país, hoje dividido ao meio, distanciado da comunidade internacional e castigado pelos números trágicos da pandemia do coronavírus.

Desde a posse no governo, Trump sempre apresentou-se como um líder atípico, um ícone da antipolítica. Por jamais ter ocupado antes um cargo eletivo ou uma posição de liderança militar, o selo presidencial que acompanha todas as suas aparições públicas ajudou a normalizar um magnata mais conhecido pelos americanos como uma celebridade da televisão.

Ao longo desses quatro anos, como uma obsessão, o republicano abraçou, como uma das metas principais, o desmonte de várias políticas públicas lançadas pelo antecessor, o democrata Barack Obama. Um dos primeiros alvos foi o Obamacare, programa federal de saúde que leva o nome do ex-presidente no apelido. Apesar de não ter conseguido derrubá-lo, Trump o enfraqueceu, cortando subsídios e dando mais liberdade a planos de saúde para aplicarem preços não regulados.

Fomento à energia renovável, preservação de parques federais, limitação à extração de petróleo e gás e o papel ativo no Acordo de Paris também foram agendas atacadas por Trump. Ele cortou o financiamento da Agência de Proteção Ambiental, assinou medidas pró-indústria do carvão, aliviou leis para extração e abandonou o pacto.

O republicano também conduziu os EUA a uma situação de distanciamento da comunidade internacional, ao rejeitar parcerias econômicas multilaterais. Sob a alegação de fortalecer postos de trabalho dentro do país, Trump decidiu, logo no início do mandato, sair da Parceria Transpacífico (TPP) e ameaçou a continuidade do Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta). Defendeu foco maior em acordos bilaterais, com parcerias "mais justas" para os Estados Unidos.

O endurecimento das regras de imigração foi outro legado de Trump, um presidente que levou o país ao shutdown (paralisação) por condicionar um acordo com o Congresso à inclusão, no orçamento, de recursos para a construção de um muro na fronteira com o México. O resultado mais triste dessa política de "tolerância zero" na imigração é a existência de pelo menos 545 crianças imigrantes que foram retidas pela administração Trump e que ainda estão separadas dos pais.

Na questão dos direitos civis, Trump adotou uma postura condescendente para com movimentos declaradamente racistas. Mais recentemente, após a explosão de protestos pela morte de George Floyd, um homem negro, por um policial branco, o republicano não apenas negou a existência do racismo na polícia como atacou as manifestações antirracistas. O presidente classificou-as de "terrorismo doméstico".

Racismo

Trump trouxe a questão racial para a campanha à reeleição, ao alertar que, caso o democrata Joe Biden fosse eleito presidente, o país seria tomado pela desordem e por protestos violentos. Nas urnas, porém, foi fortemente cobrado por boa parte dos eleitores, não apenas os negros, por ter aprofundado ainda mais a divisão do país.

O movimento "Black LivesMatter" ("Vidas negras importam") foi decisivo para conscientizar a população sobre os malefícios do racismo e para atrair uma maior participação dos negros nas eleições — o voto não é obrigatório nos EUA. Na corrida à Casa Branca, a vitória de Biden na Geórgia, um tradicional reduto eleitoral republicano, é vista como um triunfo também do movimento antirracista.

Outro fator decisivo para a derrocada de Trump foi a forma como ele tratou a pandemia da covid-19, ao menosprezar a gravidade da doença e virar as costas para a ciência, o que levou o país à condição de campeão de casos (9,8 milhões) e de mortes (236,8 mil) provocadas pelo novo coronavírus.

"De tudo o que todos sabemos sobre as atrocidades contra as minorias e as sandices, o egocentrismo, a malevolência e a desastrada política externa, na minha opinião, o mais grave foi ataque em massa às instituições científicas, e às agências de saúde pública e de meio ambiente. Este presidente jogou a população contra os educadores, a imprensa e os próprios técnicos das instituições públicas na área de saúde, tecnologia e meio ambiente", disse ao Correio a pernambucana Sandra Buarque, 50 anos, cidadã americana e moradora do Golfo do México, no estado do Alabama.

Ponto crítico

Por Lincoln Mitchell

"O legado de Trump será de quatro anos tentando destruir a América, colocando as pessoas umas contra as outras, propagando teorias bizarras e mentindo consistentemente. O manuseio incorreto da crise da covid-19 levará a centenas de milhares de mortes evitáveis e a uma desaceleração da economia, que afetará os EUA por uma geração. Ele será lembrado como um palhaço racista. Sua relação com Vladimir Putin (líder russo) nunca foi explicada. Por décadas, será símbolo de tudo o que é odiado na América: a arrogância, a ignorância e a intolerância. Este poderia ser um grande país. Os pais americanos apontarão para ele como um exemplo para os filhos do que eles não deveriam ser."

Cientista político e professor da Columbia University (Nova York)

Por Juscelino Filgueiras Colares

"Eu destaco o ganho de 7,2 milhões de empregos nesses quatro anos, que economistas, como Paul Krugman (laureado com o Nobel), diziam ser impossível. Vimos novos 420 mil postos de trabalho no setor manufatureiro, os menores índices de desemprego (3,7%) do pós-guerra, taxas recordes de emprego entre todas as minorias raciais e as mulheres. Depois da covid-19, com a elevação do desemprego a mais de 15%, detectou-se uma recuperação econômica, com aumento de 33% do Produto Interno Bruto (PIB) e redução de 6,7% do desemprego. Também cito a reforma das leis penais e processuaisl, que reduziram a desigualdade no apenamento de negros e de minorias étnicas."

Cientista político e professor de direito da Case Western Reserve University (Cleveland, Ohio)

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Agenda econômica corre risco 

Rosana Hessel 

08/11/2020

 

 

Apesar da vitória nos estados de Pensilvânia e Nevada sobre o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o democrata Joe Biden poderá enfrentar problemas de governabilidade quando assumir a Casa Branca. De acordo com analistas, a manutenção do controle do Senado por parte dos republicanos deve dificultar a aprovação das propostas feitas durante a campanha eleitoral, principalmente as econômicas. As projeções de veículos de imprensa dos EUA apontam que cada partido terá 48 assentos na Casa. Como deverá haver segundo turno para as duas cadeiras no Senado da Geórgia, no começo de 2021, esse pleito será decisivo para determinar qual legenda terá maioria. "Aparentemente, ainda vamos ter que esperar até janeiro para saber qual partido terá o controle do Senado. Se os republicanos ganharem, Biden terá dificuldades para aprovar as suas propostas", destacou o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).

A consultoria britânica Oxford Economics considera provável que os republicanos mantenham o domínio do Senado e destaca a dificuldade de governabilidade que o democrata poderá enfrentar. O Partido Democrata manteve o controle da Câmara dos Deputados. A entidade não descarta uma violenta transferência de poder e admite que este é um "risco a ser monitorado de perto".

Para Fleischer, Biden terá que usar toda a sua habilidade de conciliador junto a um Senado provavelmente controlado pela oposição. "Vai ser difícil para ele se os democratas perderem o controle do Senado. Mas, Biden é um famoso negociador e, quando estava no Senado, era muito estimado pelos colegas por essa grande capacidade de negociar", afirmou.

Ao assumir o cargo de 46º presidente dos Estados Unidos, em 20 de em janeiro de 2021, o democrata ainda terá a difícil tarefa de buscar a recuperação da maior economia global da maior recessão desde a Grande Depressão. A Oxford revisou de 3,7% para 3,6% a estimativa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos para o próximo ano.

Entre as promessas feitas por Biden durante a campanha, destacam-se o aumento dos impostos para as pessoas que ganham mais de US$ 400 mil por ano. Em 2017, Trump cortou a tributação sobre empresas e sobre os mais ricos. Porém, o novo presidente precisará de recursos para amortizar os custos do plano de ajuda de US$ 2,2 trilhões, adotado em março, e o novo, de US$ 1 trilhão, que está sendo previsto. Ele também precisará da ajuda do Congresso para aprovar novas despesas, a fim de colocar em campo promessas — como o plano de US$ 1,3 trilhão de investimentos em infraestrutura, o aumento do salário mínimo, a licença médica remunerada e uma política de estímulo à produção nacional.

Contudo, na avaliação de Fleischer, ainda há riscos institucionais no caminho de Biden nesses dois meses da gestão de Donald Trump. "O presidente é muito vingativo e temo que ele poderá fazer alguma besteira", afirmou ele, lembrando que, durante esse período em que Trump não terá mais poder, o presidente republicano será uma espécie de "pato manco".

3,6%
Estimativa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos para 2021