O globo, n. 31850, 19/10/2020. Sociedade, p. 13

 

Anvisa estuda autorizar farmácias a realizar exames laboratoriais

Elisa Martins

19/10/2020

 

 

Redes de laboratórios defendem liberação apenas de baixa complexidade; especialistas consideram que acesso pode ser ampliado, mas alertam para segurança dos pacientes

Uma discussão iniciada durante a pandemia pode interferir no cenário dos exames clínicos no Brasil. Depois de serem autorizadas a realizar testes rápidos para Covid-19, as farmácias agora buscam um sinal verde para oferecer testes laboratoriais. As redes de laboratórios, por sua vez, afirmam que a novidade poria em xeque questões de treinamento, segurança e confiabilidade de resultados e tratamentos.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu consulta pública sobre o assunto e propõe a atualização de uma resolução de 2005 que regulamenta o funcionamento dos laboratórios clínicos se não contemplar outros tipos de estabelecimentos para a realização de análises clínicas. A polêmica não está na atualização em si, que já foi solicitada por representantes do setor, mas na inclusão das farmácias nessa oferta.

- Fazer testes rápidos pode ser um avanço, expandir o acesso. Mas testes complexos de interpretação devem ser bem pensados ​​e regulamentados, para a proteção dos pacientes - afirma o sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da USP e ex-diretor da Anvisa. - Seria um desastre se eu arranjasse um jeito de você abrir um escritório dentro da farmácia. É assim nos Estados Unidos, que não é um modelo. Local que vende remédio não pode prescrever remédio.

FARMACIAS SE PREPARAM HA ANOS

Hoje, a legislação permite que as farmácias realizem apenas testes rápidos de glicemia, além da Covid, medida adotada após a escassez de exames no início da pandemia. Uma ampliação poderia permitir que as farmácias realizassem outros tipos de análises clínicas, da coleta ao resultado, com equipe especializada, cuja supervisão ficaria a cargo dos conselhos profissionais.

- A maioria dos brasileiros não faz check-ups. Essa é uma novidade que pode ampliar o acesso e mudar a saúde brasileira - argumenta Sérgio Mena Barreto, presidente da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma). - Imagine poder chegar em um só lugar e com duas gotas de sangue medir glicemia, hemoglobina glicada, colesterol, PSA, HIV, sífilis.

Mena Barreto diz que ainda não há previsão de custos e adaptações caso a mudança seja aprovada, mas diz que o setor está se preparando para isso há anos. As redes representadas pela Associação, que responde por quase metade do mercado, têm 4.500 salas de assistência farmacêutica que, segundo ele, poderiam ser adaptadas. Além disso, afirma que a associação já emitiu milhares de certificados a profissionais que poderão futuramente arrecadar e oferecer outros serviços locais, desde nutrição à fisioterapia, curativos ou reeducação postural.

Na prática, as normas locais já abriram brechas legais para as farmácias realizarem diferentes testes rápidos. Com base neles, em Belo Horizonte, a rede Drogaria Araújo oferece testes rápidos para PSA, hepatites, sífilis, HIV, entre outros. E 95% das lojas têm salas para realização de exames e orientação farmacêutica, afirma Fabiano Queiroz, gerente farmacêutico da Araújo Manipulación.

Do outro lado do debate, o cerne da preocupação é justamente a variedade de exames permitidos, regulados por homologação nacional.

- Existem testes rápidos que funcionam bem e outros que dão resultados errados. Essa é a lógica de ter a gestão de um laboratório, que tem profissionais que estudaram para fazer calibração, validação, controle de qualidade. Não é o que está sendo proposto agora - afirma Wilson Shcolnik, presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed).

Segundo ele, a Abramed não é contra a realização de testes rápidos nas farmácias, desde que restritos àqueles de baixa complexidade.

- Existem problemas de confiabilidade nos testes rápidos, vimos isso acontecer com a Covid. E resultados errados podem colocar em risco a segurança dos pacientes. Isso pode ter consequências imprevisíveis para a saúde das pessoas - afirma Shcolnik.

A Anvisa informa que está ouvindo todos os setores envolvidos e que receberá considerações sobre o assunto até o dia 23 de outubro. A agência também considerará que o prazo poderá ser prorrogado. Com o término da consulta pública, ainda podem decorrer alguns meses, dependendo da quantidade de sugestões enviadas, até que sejam analisadas e submetidas à deliberação e decisão da diretoria colegiada da Anvisa.