O Estado de São Paulo, n.46317, 09/08/2020. Economia, p.B5

 

Entrevista - Roberto Azevêdo: "A OMC precisa se adaptar ou vai se tornar obsoleta"

Roberto Azevêdo

09/08/2020

 

 

Para diretor-geral da OMC, protecionismo é insustentável, pois deixa países expostos a choques de oferta

A 22 dias de deixar a direção-geral da Organização Mundial do Comércio – após sete anos no cargo –, o embaixador Roberto Azevêdo afirma acreditar que o protecionismo alavancado pela pandemia não deve se prolongar. "A autossuficiência, em todas as etapas, não é sustentável e expõe a economia a choques de oferta e de preço", diz. Para ele, os países devem, agora, procurar diversificar suas cadeias de suprimentos, o que pode dar oportunidades para o Brasil. O diplomata brasileiro decidiu deixar seu posto na OMC um ano antes do previsto para, segundo ele, dar mais tempo para que o órgão escolha seu sucessor, sem que o processo dispute atenção com os preparativos para a 12.ª Reunião Ministerial, que acontecerá em 2021. Sem detalhar, afirma que seu próximo projeto não será no Brasil nem em Genebra. A seguir, trechos da entrevista concedia ao Estadão por e-mail.

O comércio internacional estava conturbado antes da pandemia, com tensões entre EUA e China, os EUA esvaziando a OMC e uma onda nacionalista/populista. Diante desse cenário, como fortalecer a ordem comercial internacional baseada em regras?

Sem dúvida a pandemia conturbou ainda mais o cenário comercial. Mas ela mostrou que não há saída sem cooperação, sem soluções coordenadas. Está evidente que ações que até fazem sentido numa emergência isolada chegam a ser contraproducentes em uma crise global. Medidas de restrição ao comércio, por exemplo, rompem as cadeias de suprimentos, atrapalham a eficiência da produção e reduzem a oferta de produtos a preços acessíveis. Isso prolonga a crise econômica e de saúde. Precisamos deixar as gerações futuras melhor equipadas, com instrumentos de concertação ágeis, automáticos e eficazes. Essa lição precisa ser finalmente aprendida.

A pandemia mudou as necessidades na OMC? Quando se fala na reforma do órgão, quais mudanças são essenciais?

Sempre defendi que a OMC precisa ser mais ágil e responsiva. Precisa estar apta para responder às novas demandas da economia contemporânea, que passa por profundas transformações. A pandemia está acelerando tendências – como, por exemplo, o fortalecimento da economia digital. Existe um 'novo normal' em formação. A OMC tem de se adaptar a isso.

A pandemia acirrou as tensões entre EUA e China. Um retorno da guerra comercial é provável?

A pandemia está causando a maior recessão mundial em tempos de paz, com consequências comerciais e sociais dramáticas. Isso impacta o diálogo bilateral. A implementação de compromissos assumidos poderia se ver dificultada pelas medidas necessárias para conter a pandemia. Mas entendo que há disposição para retomar as conversações.

A pandemia e a crise na OMC, com o Órgão de Apelação paralisado, podem favorecer o protecionismo. É possível evitar essa tendência? Caso contrário, qual será o impacto para o Brasil?

A insegurança causada pela pandemia pode levar alguns governos, num primeiro momento, a buscarem a autossuficiência em setores considerados essenciais. Mas isso terá vida curta. A autossuficiência, em todas as etapas, além de raramente possível, não é sustentável e expõe a economia a novos choques de oferta e de preço. O comércio internacional é vital para viabilizar escala de produção e abastecimento de produtos a preços acessíveis. Os atores econômicos buscarão diversificar suas cadeias de suprimentos, para reduzir riscos de desabastecimento. Esse movimento poderá abrir oportunidades para diversos países, inclusive o Brasil. Mas é preciso se preparar para aproveitar essas oportunidades.

Trump já ameaçou retirar os EUA da OMC. Dado que seu discurso contra órgãos multilaterais ganhou força, o que ocorreria com o órgão caso os EUA realmente o deixassem?

O que escuto dos EUA é uma frustração com os organismos multilaterais. Frustração com os tempos do multilateralismo e com a ausência de regras para lidar com a nova realidade econômica que se esboça. A isso se soma agora a crise global de saúde pública. Os governos estão sob pressão. A elevação no tom das críticas é natural. Concretamente, na OMC, os EUA seguem ativos – inclusive negociando regras de comércio eletrônico. Defendem uma reforma profunda do sistema, o que não será fácil, e isso não se consegue estando fora.

Qual seu legado na OMC?

Primeiro, os acordos concluídos e, tão ou mais importante, a mudança na cultura negociadora da Organização, que começou no meu segundo mandato. Desde que assumi, fechamos acordos de peso no comércio mundial, após 18 anos de paralisia. Posso citar o Acordo de Facilitação de Comércio, a abolição dos subsídios às exportações agrícolas, a expansão do Acordo de Tecnologia da Informação. Mas também plantamos sementes para a modernização da OMC. O lançamento de negociações plurilaterais em comércio eletrônico, facilitação de investimento, regulação doméstica em serviços são algumas conquistas. O processo de reforma da Organização também é. A economia passa por mudanças vertiginosas. A OMC precisa se adaptar ou se tornará obsoleta e incapaz de seguir cumprindo sua missão – expondo-se ao risco de ser suplantada.

Há rumores de que o sr. deve ir para o Alibaba. É verdade?

Ainda estou considerando diferentes projetos. Posso adiantar que não será nem no Brasil nem em Genebra.

China x EUA

"A pandemia está causando a maior recessão mundial em tempos de paz. Isso impacta o diálogo bilateral. Mas entendo que há disposição para retomar as conversações.