O Estado de São Paulo, n.46319, 11/08/2020. Espaço Aberto, p.A2

 

Na ciência não há atalhos

Luiz Fernando Lima Reis

11/08/2020

 

 

Este momento é uma oportunidade para refletirmos sobre o papel da ciência no enfrentamento e na gestão da pandemia de covid-19. São desafios que mobilizam cientistas globalmente. Fomos gerando conhecimento sobre o novo coronavírus em paralelo ao espalhamento da doença. Como diz o ditado, "assobiando e chupando cana".

Foi no curso da pandemia que deciframos o genoma do vírus e desenvolvemos testes diagnósticos. Fomos aprendendo a tratar a doença e percebemos como ela é heterogênea, com sintomas variados. A escassez de conhecimento disparou esforços da comunidade científica, mundo afora, pela busca de evidências que possam ajudar nas tomadas de decisão sobre a pandemia.

Na busca de soluções, pesquisadores organizaram-se em grupos colaborativos, instituições colocaram-se lado a lado e órgãos regulatórios prepararam-se para responder com celeridade à demanda por novos estudos. No Brasil, os comitês de ética em pesquisa dos grandes centros e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) passaram a responder, em questão de dias, a pedidos que antes levavam meses. Recursos até então escassos começaram a aparecer por meio de doações e parcerias, incluindo da iniciativa privada, que se colocou ao lado da academia com financiamentos expressivos.

A sociedade familiarizou-se com jargões da pesquisa, como as etapas do desenvolvimento de novas drogas. Falase hoje de forma natural sobre estudos in vitro, em ambiente laboratorial, que produzem hipóteses, mas ainda estão longe da prática. Comenta-se corriqueiramente sobre os ensaios clínicos que buscam dados de segurança e eficácia de drogas. O conhecimento foi sendo construído com o rigor do método e das boas práticas em pesquisa. Como se diz lá em Minas Gerais, minha terra natal, se atalho fosse bom, não existiria o caminho. Na ciência não pulamos etapas e não temos atalhos, mesmo que o caminho seja longo. A ciência comprovou a eficácia das máscaras e o efeito positivo do distanciamento social para a redução da pressão no sistema de saúde. Avanços nos testes diagnósticos e estudos epidemiológicos permitem o mapeamento mais preciso da expansão da doença. Novos medicamentos estão sendo testados e a tão necessária vacina está a caminho.

Nesse período, a ciência brasileira mostrou o seu enorme potencial e sua prontidão. Por décadas vivemos o debate de financiamento em pesquisa, que é escasso e intermitente. A comunidade científica pôs-se à frente desses desafios. Isso foi possível pela excelência dos cientistas brasileiros, que investiram na causa do conhecimento e na formação de brilhantes jovens pesquisadores. Há também que reconhecer a importância dos órgãos reguladores, que foram céleres e sensatos em suas decisões. Mas, principalmente, reconhecer a força da colaboração.

Hoje, projetos colaborativos se sobrepõem às iniciativas isoladas. A parceria entre grupos, instituições acadêmicas e privadas trouxe oportunidades e soluções até então raras. Essa rede permitiu colaborações entre instituições que, embora possam parecer concorrentes, têm a preocupação genuína do melhor cuidado ao paciente. Juntas, indústria e academia desenvolveram novos equipamentos, métodos diagnósticos e tratamentos. Avanços importantes foram protagonizados pela ciência brasileira e reconhecidos internacionalmente.

Como cientista brasileiro, destaco importantes contribuições da nossa comunidade. É consenso que a saída da pandemia está no desenvolvimento da vacina. Se hoje discutimos a possibilidade de produção de imunizantes no Brasil, é, em parte, pela excelência de recursos humanos existentes no Instituto Butantan e na Fiocruz. Se faltava a infraestrutura e obras para tornar viável a produção local, a iniciativa privada entendeu a necessidade e entrou no projeto. Ao final, teremos o legado de novas plantas para aumentar nossa produção de biofármacos e vacinas.

Tivemos também um destaque relevante com publicação no New England Journal of Medicine, a mais conceituada revista médica do mundo, de pesquisa conduzida pela Coalizão Covid-19 Brasil, grupo colaborativo liderado por seis hospitais e duas redes de pesquisa, que contou com a participação de 55 hospitais pelo Brasil. Um trabalho 100% nacional, desenhado, financiado e produzido pela ciência brasileira e por uma indústria farmacêutica também nacional.

Para os que insistiram no atalho, os resultados foram nefastos, pois viram seus trabalhos sofrerem revogações das publicações e sua reputação sendo contestada pela comunidade científica. Sem o suporte da melhor evidência, anteciparam-se com práticas não comprovadamente eficazes, pondo em risco a segurança e a qualidade da assistência ao paciente.

Em todo o mundo, e principalmente no Brasil, a ciência tem respondido à altura da gravidade do momento, oferecendo à sociedade o conhecimento mais avançado, seguro e eticamente disponível.

BIOQUÍMICO, DOUTOR EM IMUNOLOGIA PELA ESCOLA DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE NOVA YORK, É DIRETOR DE ENSINO E PESQUISA DO HOSPITAL SÍRIO-LIBANÊS