Correio braziliense, n. 20989, 11/11/2020. Artigos, p. 9

 

Representatividade eleitoral e consolidação democrática

Renata Gil 

11/11/2020

 

 

Nos últimos anos, vários países do mundo registraram avanços importantes para a afirmação e a conquista dos direitos da mulher. Seja no setor público, seja na iniciativa privada, aos poucos, elas vêm ocupando espaços que antes eram majoritariamente ocupados por homens. No Brasil, esses ganhos também ocorreram, mas ainda são incontáveis as barreiras que persistem a dificultar a igualdade de condições entre os gêneros nos espaços de poder.

A campanha eleitoral de 2020 trouxe uma boa notícia: o percentual de candidatas mulheres é recorde. São 179,6 mil concorrentes (33,1%), sendo que, em anos anteriores, o índice não passava dos 32%. Mesmo que pelas regras atuais os partidos precisem reservar, pelo menos, 30% das vagas e da verba de campanha para elas, na política, muitas mulheres ainda encontram dificuldade para serem eleitas ou terem voz ativa nas tomadas de decisões em todo o país. É o sintoma de uma exclusão histórica que ainda resulta na baixa representatividade feminina, também em outros cargos de liderança.

No atual cenário do pleito municipal, a utilização de mulheres como laranjas — candidatos de fachada, que recebem repasses em dinheiro público, que acaba sendo desviado — nas eleições é uma preocupação, assim como a criação de fake news preconceituosas direcionadas às candidatas. Temas pertinentes que vêm sendo discutidos constantemente pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, que vê nas eleições um desafio e uma oportunidade para reduzir a desigualdade nos cargos públicos.

O ministro vem contribuindo com o debate e fomentando ações que inspirem mulheres a entrarem na política. O objetivo é incentivar o protagonismo feminino. Hoje, ainda que as mulheres sejam a metade da população e do eleitorado brasileiro, a representatividade no Senado e na Câmara dos Deputados, esferas federais, não chega a 20%. Nas prefeituras, a representação é ainda menor: apenas 11,6% dos prefeitos eleitos em 2016 são mulheres.

Conforme pesquisa realizada pelo TSE, no Brasil, 52,21% dos eleitores são mulheres, enquanto 47,72% são homens. Portanto, mesmo que a luta das mulheres por seus direitos e pelo exercício da cidadania não seja tão recente, ainda há um longo caminho a percorrer para as devidas mudanças na sociedade.

No clássico Segundo sexo, Simone de Beauvoir descreve as engrenagens que mantiveram a mulher, ao longo dos séculos, sob a tutela masculina. A escritora francesa cita o antropólogo Claude Lévi-Strauss para asseverar que, na maioria das comunidades primitivas, o poder político esteve sempre vinculado ao homem — que encarnava, em si, o conceito da autoridade pública a qual tinha a prerrogativa de exercer. As mulheres, nesse contexto, chegavam a figurar como bens, objetos com valor de troca à disposição de seus proprietários.

Assim, desde o princípio tem sido negada às mulheres, reiteradamente, a possibilidade de governarem a si mesmas. Mas, hoje, a simples existência de mulheres deputadas ou magistradas, por exemplo, autônomas e independentes, desfere um golpe de morte no atraso.

Para a consolidação do Estado verdadeiramente democrático de direito, muito ainda precisa ser feito. Em primeiro lugar, cabe-nos reconhecer a exclusão histórica das mulheres dos espaços de liderança da vida pública. Compete às mulheres, seja na esfera pública ou privada, ocupar, cada vez mais, esses espaços de poder, rendendo, aos poucos, a histórica cultura que, durante muito tempo e ainda hoje, reprimiu e ofendeu diversos direitos do gênero, fazendo prevalecer a falsa impressão de que magistratura e política são espaços privativos à atividade masculina.

A entrega de postos de comando às mulheres se configura, portanto, como um exercício evolutivo, que espelha, pari passu, o estado de desenvolvimento social e humano dos cidadãos. O poder precisa se abrir à ocupação feminina — do contrário, estará condenado a residir, eternamente, no obsoleto.

RENATA GIL

Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

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Eleições 2020: cidades inteligentes

Letícia Piccolotto 

11/11/2020

 

 

Falta menos de uma semana para as eleições municipais. Em breve poderemos escolher as lideranças dos poderes Executivo e Legislativo das 5.570 cidades do país, aqueles e aquelas que serão responsáveis por criar políticas públicas para os próximos quatro anos.

Esta sempre foi uma grande responsabilidade, mas ela certamente se tornou ainda maior no contexto atual: prefeitos, prefeitas, vereadores e vereadoras eleitos terão diante do si o desafio de mitigar os efeitos que a pandemia do coronavírus trouxe para as distintas áreas da sociedade, ao mesmo tempo em que conectam seus municípios às tendências e oportunidades que devem surgir nos próximos anos.

O momento é estratégico e as decisões tomadas agora não devem influenciar somente os próximos 4 anos dos mandatos, mas, sim, definir as bases sobre as quais construiremos — ou não — as cidades do futuro. Sendo assim, te convido a uma reflexão: que tipo de cidade queremos construir para superar os problemas urbanos, como educação, saneamento, infraestrutura e transporte?

A minha resposta para essa pergunta é direta: para enfrentar os problemas graves que afetam a realidade dos mais de 85% de brasileiros e brasileiras que vivem no meio urbano, precisamos construir Cidades Inteligentes.
As Cidades Inteligentes ou Smart Cities utilizam tecnologia para gerar eficiência nas operações urbanas, de tal forma que mantêm seu desenvolvimento econômico ao mesmo tempo em que melhoram a qualidade de vida da população. A regra, portanto, é o uso otimizado e interdependente dos recursos, ao mesmo tempo em que se prioriza o bem-estar dos cidadãos em todas as decisões tomadas.

O ranking Connect Smart Cities 2020 traz um panorama sobre o tema no Brasil. Analisando indicadores de todos os 673 municípios com mais de 50 mil habitantes, a pesquisa aponta São Paulo (SP) como a líder do ranking, seguida por Florianópolis (SC), Curitiba (PR) e Campinas (SP), ocupando os segundo, terceiro e quarto lugares, respectivamente. Engana-se quem acredita que somente cidades de grande porte podem ser "inteligentes": municípios como São Caetano do Sul (SP, 6ºlugar), Santos (SP, 7º lugar) e Niterói (RJ, 11º lugar), também ocupam as primeiras posições do levantamento.

Pelo mundo, vemos exemplos concretos de Cidades Inteligentes, como na Coreia do Sul. A cidade de Songdo é referência mundial por conta do planejamento urbano. Construída ao redor de um aeroporto, sua população é estimada em 250 mil habitantes em 2020. Entre as tecnologias implantadas estão a reprogramação de semáforos de forma automática caso haja intensidade de tráfego em certas vias. A densidade do trânsito é controlada por sensores subterrâneos e há, também, um sistema inovador para recolher lixo, o pneumático, que praticamente elimina a necessidade de coleta.

Na Espanha, Barcelona também é exemplo quando falamos de coleta de resíduos. Lá, existem escotilhas por toda parte que recolhem os sacos de hora em hora, durante os sete dias da semana. Todas as bocas dos latões são conectadas a um gigantesco sistema de tubulação enterrado a pelo menos cinco metros da superfície. Trata-se de um grande sugador que aspira o lixo. Os sacos chegam a viajar a 70 km/h pela tubulação, chegando ao destino final, em um centro de coleta.

Em Copenhague, capital da Dinamarca, a tecnologia é utilizada, especialmente, para diminuir emissões de carbono, reduzindo, consequentemente, a utilização de combustíveis fósseis. Há investimento pesado em ciclovias para incentivar a população a utilizar bicicletas em vez de carros. Para que isso acontecesse de maneira eficiente, foi preciso criar estacionamentos próprios para esta modalidade de transporte, locais de aluguel e devolução, além de dispositivos para transporte do equipamento no modais públicos, como trens, ônibus e metrôs. O resultado é que 55% da população utiliza bicicleta para ir ao trabalho diariamente, reduzindo 21% das emissões de carbono nos últimos 12 anos.

Embora não haja uma única definição do conceito, cada vez é mais evidente a relação entre as Cidades Inteligentes e o uso de tecnologias. Em estudo global publicado pela Aruba, empresa da Hewlett Packard Enterprise, chamado "A Internet das Coisas: Hoje e Amanhã", depoimentos apontam que 71% das cidades que investiram em IoT (Internet of Things) na gestão dos serviços urbanos conseguiram reduzir custos. Entre as cidades observadas, 70% afirmam que a tecnologia oferece melhor visibilidade para os processos de gestão, facilitando para que novos investimentos sejam realizados até se alcançar o patamar de cidades inteligentes.

A tendência é de que a vida nas zonas urbanas se torne cada vez mais complexa e excludente, caso não sejam realizadas mudanças na forma como se faz a gestão dos recursos e das demandas das metrópoles.

Por esse motivo, as cidades inteligentes não podem mais estar fora da agenda política. Este assunto não faz mais parte de um futuro distante. Pelo contrário, está acontecendo com total rapidez pelo mundo afora. Nas eleições deste ano, precisamos de líderes dispostos a transformar os municípios em um modelo mais participativo e inteligente.

A boa notícia é que, para essa árdua tarefa, as tecnologias digitais e a inovação aplicadas ao governo são poderosas aliadas. Elas ampliam a disponibilidade de dados, permitem o monitoramento contínuo dos serviços, além de fortalecer a capacidade de atendimento, a simplificação dos processos e o aprimoramento da qualidade e da agilidade dos serviços públicos. 

Letícia Piccolotto

Presidente executiva da Fundação Brava e fundadora do BrazilLAB, primeiro hub de inovação GovTech que conecta startups com o poder público