Correio braziliense, n. 20990, 12/11/2020. Saúde, p. 14

 

Assintomáticos: grande estudo comprova contágio

Paloma Oliveto 

12/11/2020

 

 

Um dos enigmas ainda não solucionados do Sars-CoV-2 é a capacidade de transmissão do vírus por pacientes assintomáticos. Enquanto alguns estudos demonstraram que pessoas infectadas, mas sem sintomas, podem espalhar o patógeno, outros mostraram o contrário. Agora, uma pesquisa com um número significativo de pessoas — quase 2 mil — em um ambiente controlado, um local de treinamento da Marinha norte-americana, demonstra que, apesar das medidas de quarentena com supervisão rigorosa, esse tipo de caso acontece.

No estudo, publicado na revista The New England Journal of Medicine, pesquisadores da Escola de Medicina Icahn de Monte Sinai, em Nova York, e do Centro de Pesquisa Médica Naval utilizaram dados de novos recrutas da Marinha enquanto eles estavam sob uma quarentena supervisionada de duas semanas. Os resultados mostraram que poucos dos infectados tinham sintomas antes de receber o diagnóstico de covid-19. Ainda assim, a transmissão ocorreu, apesar da implementação das medidas de higiene e distanciamento social.

"Os dados revelaram a propagação assintomática do vírus, mesmo sob ordens militares estritas de quarentena e medidas de saúde pública que, provavelmente, foram cumpridas com mais rigor do que seria possível em outros ambientes com alta circulação de jovens, como campi universitários", diz Stuart Sealfon, professor de neurologia no Monte Sinai e um dos autores do estudo. De acordo com ele, diariamente eram feitas medições da temperatura dos recrutas e, mesmo entre os infectados, os casos só foram detectados por exames, feitos independentemente de os jovens apresentarem ou não algum sintoma. Atualmente, o protocolo da maioria dos países, incluindo o Brasil, é de se testar apenas pessoas que demonstram algum sinal da doença, como febre, falta de ar, tosse e perda de olfato/paladar.

"O vírus foi amplamente transmitido dentro de um determinado grupo de pelotão, onde os recrutas tendiam a ficar próximos uns dos outros", continua Sealfon. "Essa é uma infecção difícil de controlar em jovens, mesmo com supervisão rigorosa do uso da máscara, distanciamento social e outras medidas de mitigação", destaca. De acordo com o médico, locais como escolas, ambiente de trabalho e batalhões militares e de polícia deveriam testar os frequentadores mesmo na ausência de sintomas.

Um mês

O estudo contou com 1.848 participantes, matriculados em nove classes diferentes de recrutas da Marinha, cada uma contendo de 350 a 450 jovens, entre 15 de maio e o fim de julho. Os voluntários aceitaram participar de uma quarentena de duas semanas em casa, antes de começarem o treinamento. Assim que chegaram, foram obrigados a seguir medidas estritas de controle, ficando hospedados em quartos para duas pessoas por 15 dias — a duração da pesquisa — antes do início das atividades de aprendizado naval reais.

A quarentena do grupo supervisionado ocorreu em um colégio usado apenas para essa finalidade. Cada turma de recrutamento ficava em edifícios diferentes e tinha horários de jantar e de treinamento diferentes, de modo que elas não interagiam.

As aulas semanais foram divididas em pelotões de 50 a 60 jovens. Durante o período de estudo, todos os recrutas usaram máscaras de tecido, observaram o distanciamento social de pelo menos um 1,8m e lavaram as mãos regularmente. Além disso, cada um tinha apenas um colega de quarto. A maior parte das aulas, incluindo exercícios e aprendizado de costumes e tradições militares, era ministrada ao ar livre. Após o término da quarentena de cada turma, uma limpeza profunda, com uso de alvejante nas superfícies, foi feita em todas as salas e áreas comuns dos dormitórios para a chegada da próxima turma.

PCR

A fim de determinar a prevalência e a transmissão assintomática e sintomática do Sars-CoV-2 durante a quarentena supervisionada, os participantes foram testados dois, sete e 14 dias após a chegada, com o teste de esfregaço nasal (PCR), considerado o padrão ouro para diagnóstico da covid-19. A análise dos genomas virais dos recrutas infectados identificou que seis grupos de jovens estavam temporal e espacialmente associados, revelando diversos eventos de transmissão local durante o isolamento.

"A identificação de seis grupos de transmissão independentes, definidos por mutações distintas, indica que houve várias introduções e surtos de Sars-CoV-2 durante a quarentena supervisionada", diz Harm van Bakel, professor de genética e ciências genômicas em Monte Sinai. "Os dados desse grande estudo indicam que, para reduzir a transmissão do coronavírus em grupos e prevenir o espalhamento para a comunidade em geral, precisamos estabelecer testes de vigilância várias vezes em todos os indivíduos, independentemente dos sintomas."

Frase

"Essa é uma infecção difícil de controlar em jovens, mesmo com supervisão rigorosa do uso da máscara, distanciamento social e outras medidas de mitigação"
Stuart Sealfon, professor de neurologia no Monte Sinai e um dos autores do estudo

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Rússia: vacina tem 92% de eficácia 

12/11/2020

 

 

Dois dias depois de a Pfizer e a BionTech apresentarem resultados sobre a eficácia de 90% da vacina para a covid-19, os desenvolvedores do imunizante russo Sputnik V distribuíram um comunicado para a imprensa afirmando que o índice de proteção da substância foi de 92%. A informação, assim como a dos concorrentes, não foi publicada em um artigo científico, embora o texto afirme que, "em breve", será divulgada em uma "das principais revistas médicas revisadas pelos pares". Especialistas reagiram positivamente ao anúncio, mas com cautela.

De acordo com o comunicado, trata-se da primeira análise provisória dos ensaios clínicos de fase 3 na Rússia. A vacina também está em testes na Bielorrússia, nos Emirados Árabes, na Venezuela e, mais recentemente, na Índia. Ao todo, 40 mil voluntários receberão as duas doses da substância — por enquanto, 20 mil tomaram a primeira; e 16 mil, ambas.

Os resultados preliminares, apresentados ontem, referem-se a 20 casos confirmados da doença, 21 dias depois de os participantes serem imunizados. O texto afirma que a eficácia foi de 92% — ou seja, 20 pessoas que receberam uma dose da vacina foram infectadas pelo Sars-CoV-2, mas 92% delas estavam no grupo de placebo. Infere-se, pelos cálculos, que 18 receberam placebo; e duas, a imunização. Segundo o comunicado, não foram observados efeitos colaterais graves.

Adenovírus

A Sputnik V usa uma abordagem diferente da vacina de mRNA da Pfizer, e semelhante às da Johnson & Johnson e a da Universidade de Oxford/AstraZeneca, que está em teste no Brasil. Dois adenovírus modificados geneticamente (Ad26 e Ad25) levam até as células um pedaço da proteína spike do vírus (a estrutura que permite a entrada do Sars-CoV-2 no núcleo celular do hospedeiro). Assim, em contato com o micro-organismo, o sistema imunológico o reconhece e desencadeia o ataque.

As vacinas de adenovírus são seguras e vêm sendo utilizadas desde a década de 1950. Uma vantagem em relação aos imunizantes de RNA é que elas não necessitam de armazenamento a temperaturas baixíssimas, uma das exigências da substância da Pfizer, tida como possível entrave na logística da distribuição da vacina.

Em setembro, depois de diversas queixas da comunidade científica internacional sobre a falta de divulgação de dados sobre a Sputnik V, o Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya publicou um artigo, na revista médica The Lancet, com os resultados sobre a segurança do imunizante nas fases 1 e 2 do ensaio clínico. A substância russa foi a primeira vacina contra a covid-19 a receber registro de uso.

Amostra pequena

Gillies O'Bryan-Tear, presidente de política e comunicações da Faculdade de Medicina Farmacêutica, no Reino Unido, avalia que os resultados de agora "parecem ser encorajadores", considerando a taxa de eficácia superior a 90%. "No entanto, apenas 20 casos da doença foram objeto dessa análise provisória, em contraste com os 94 casos relatados pela Pfizer. É importante ressaltar que a Pfizer planejou, inicialmente, uma análise provisória em 32 casos, mas, após discussão com o FDA (órgão regulatório dos EUA), aumentou para 60, e acabou relatando em 94", compara. "As análises intermediárias devem ser pré-planejadas, antes da análise dos resultados. O Centro Gamaleya não forneceu o protocolo. Portanto, não sabemos se essa análise provisória foi pré-planejada, mas, em vista de seu pequeno tamanho, presumo que não", destaca.

"O anúncio provisório da eficácia da vacina Sputnik é bem-vindo. Temos bons motivos para estar otimistas, pois essa vacina não precisa do armazenamento de -80ºC, em contraste com a vacina de RNA da Pfizer", diz Ravindra Gupta, professor de microbiologia da Universidade de Cambridge. Ele lembra, porém, que o número de casos relatados da doença foi muito pequeno, e que são necessários mais dados para se confirmar a eficácia da fórmula imunizante. No comunicado à imprensa, Kirill Dmitriev, CEO do Fundo de Investimento Direto Russo (FIDR), responsável pelo financiamento da vacina, afirmou que a Sputnik V amplia o leque de vacinas em potencial para a covid-19. "Gostaria de enfatizar a importância da interação internacional e da cooperação estreita entre os desenvolvedores de vacinas de diferentes países. As vacinas devem estar fora da discussão política. O mundo precisa de um portfólio diversificado de vacinas de qualidade." O CEO também destacou que muitos países, incluindo o Brasil, demonstraram interesse em participar de testes e de comprar doses da substância. (PO)

40 mil
Quantidade de voluntários que participarão dos testes com a Sputnik