Correio braziliense, n. 20992, 14/11/2020. Colunas, p. 17

 

Conexão diplomática

Silvio Queiroz 

14/11/2020

 

 

Bolsonaro se pergunta:"Com que roupa?"

Vizinhos sul-americanos, parceiros mais distantes na geografia e observadores do cenário, em geral, aguardam com expectativa curiosa algum gesto ou movimento que permita decifrar a estratégia do governo brasileiro para retomar as relações com Washington após a chegada de Joe Biden à Casa Branca. O presidente eleito toma posse em janeiro, dentro de algo mais que dois meses. Até aqui, uma semana depois de a fatura ser dada por liquidada a favor do desafiante democrata, o Planalto e o Itamaraty mantêm silêncio. Lado a lado com o colega russo, Vladimir Putin, Jair Bolsonaro segue sem cumprimentar o vitorioso — e, por tabela, reconhecer a derrota do amigo Donald Trump.

Na outra ponta, enquanto o bilionário republicano reluta em aceitar o resultado que o mundo (praticamente) inteiro acata, o veterano político do Partido Democrata começa a esboçar passos na montagem da equipe. Biden deu as primeiras indicações sobre os rumos que projeta para a política externa, com destaque para a reintegração do país à OMS, expressão da prioridade que anunciou para o combate à covid. Assim como a intenção declarada de retornar ao Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, o giro de 180 graus na crise sanitária deixa Bolsonaro na contramão do país que elegeu, desde a campanha vitoriosa de 2018, como o aliado preferencial do Brasil sob o seu governo.

Ainda que não compareça à cerimônia de posse, que deverá ser limitada pelas contingências da pandemia, o presidente brasileiro se vê como o gênio Noel Rosa, perguntando-se na letra do samba: “Com que roupa eu vou?”

Quem vem lá?

Como no resto do mundo, também por aqui as atenções se voltam para a escolha de Biden para o Departamento de Estado. Nas décadas em que ocupou uma cadeira no Senado, o agora presidente eleito chegou a presidir a Comissão de Relações Exteriores. Por sinal, ocupava o posto quando foi escolhido por Barack Obama como candidato a vice-presidente na campanha vitoriosa pela Casa Branca, em 2008. Nos oito anos em que fez dobradinha com o primeiro presidente negro, que era senador de primeiro mandato, Biden foi uma das vozes mais ouvidas nos assuntos de política externa, chegou a ser o principal interlocutor de Washington com a América Latina, incluindo o Brasil.

Entre os que se esforçam em deslindar os caminhos que o novo presidente imprimirá à potência ainda hegemônica, é consenso a expectativa de que ele terá participação decisiva na condução e na execução da diplomacia norte-americana. A presença errática e imprevisível de Trump deve dar lugar a um roteiro mais consistente e concatenado.

Refilmagem

À falta de uma posição oficial de governo sobre a troca de comando na Casa Branca e de qualquer pista mais segura sobre como Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo farão o enlace com a nova equipe, a semana termina com as redes sociais repercutindo a declaração do presidente sobre “saliva” (diálogo) e “pólvora” (confronto). E, naturalmente, o reconhecimento informal do vice, o general Hamilton Mourão, que classificou como “irreversível” a vitória de Joe Biden — embora frisando que fazia o comentário a título pessoal.

Entre os internautas, houve quem invocasse uma comédia de 1959, estrelada por Peter Sellers. O rato que ruge conta sobre um pequeno e irrelevante ducado europeu, de ares medievais, onde o primeiro-ministro convence a rainha (ambos interpretados magistralmente pelo ator inglês) a invadir os EUA. A ideia é capitular prontamente para qualificar-se a um Plano Marshall, como a Alemanha Ocidental após a derrota do III Reich nazista na Segunda Guerra.

Quinteto emergente

O desfecho da eleição nos EUA e os próximos capítulos do thriller da transição devem figurar, na semana que entra, na pauta da 12ª Cúpula do Brics. Os líderes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (pela ordem dos países na sigla) acompanham a redefinição geopollítica dos EUA em meio a um processo de reposicionamento no cenário global. Surgido como articulação entre potências consideradas emergentes, o Brics foi, nos governos Lula e Dilma, a opção preferencial da diplomacia brasileira para a inserção internacional — principalmente nos oito anos em que o embaixador Celso Amorim chefiou o Itamaraty.

A ascensão de Bolsonaro, em companhia de Ernesto Araújo, resultou na reorientação da política externa em direção ao norte e mandou para escanteio a vertente sul-sul. Como desdobramento, o quinteto emergente passou a ter, pela ótica de Brasília, um lugar preponderantemente comercial — até pela supremacia da China nas trocas externas do país. De olho na movimentação em Washington, Putin e o presidente chinês, Xi Jinping — que já cumprimentou Biden — podem dar as primeiras pistas sobre o que esperam da relação com a Casa Branca.

Nas condições da pandemia, a reunião dos cinco será realizada, pela primeira vez, em ambiente virtual, nesta terça-feira, com abertura às 8h (horário de Brasília).