Correio braziliense, n. 20993, 15/11/2020. Mundo, p. 20

 

Ele não quer largar o poder

Rodrigo Craveiro 

15/11/2020

 

 

A palavra looser ("perdedor") nunca foi um verbete do dicionário de Donald Trump. Nos últimos oito dias, o presidente republicano fez questão de ignorar a derrota para Joe Biden e tem insistido em denúncias de fraudes na votação, mesmo sem apresentar qualquer evidência. A cerimônia de posse do democrata está marcada para 20 de janeiro. Até lá, Trump deve dificultar a vida do sucessor, ainda que, simbolicamente, transforme-se em um "pato manco", uma figura sem continuidade de governo e quase que protocolar no cargo. Existe o temor, inclusive, de que o magnata se aferre ao poder e articule um golpe — mudanças no comando militar e a relutância em destravar a transição corroboram a teoria. Enquanto Biden tenta acelerar a mudança de governo, o atual inquilino da Casa Branca coloca em xeque a própria democracia. Especialistas consultados pelo Correio alertaram que Trump deve tumultuar o país.

"Embora o presidente republicano seja um 'pato manco', ele ainda será o chefe de Estado até o meio-dia de 20 de janeiro. Assim, pode tomar decisões autoritárias no Executivo e na política externa", advertiu James Pfiffner, professor emérito da Faculdade de Política e Governo da Universidade George Mason, em Arlington (Virgínia). O estudioso acredita que muitas dessas ações poderão ser revertidas por Biden. Ele não descarta, porém, que Trump se recuse a cooperar com a equipe de transição democrata ou que tome decisões imprudentes de política externa.

Pfiffner entende que a recusa de Trump em aceitar a realidade da derrota mostra-se perigosa para os Estados Unidos. "Isso porque muitos de seus simpatizantes podem comprar a ideia de que Biden foi eleito por meio de fraude, uma inverdade. Trump importa-se mais com o próprio ego do que com o que é bom para a nação. Ele não se importa se causa danos ao país ou ao governo", lamentou. Ele lembrou que, depois de eleições apertadas em 1960, em 2000 e em 2016, os respectivos candidatos derrotados — Richard Nixon, Al Gore e Hillary Clinton — admitiram o revés e concordaram que o novo presidente foi legitimamente eleito.

O historiador político James Naylor Green, professor da Brown University (em Rhode Island), teme que Trump crie o máximo de caos e de desordem possível para enfraquecer a transferência de poder para Biden e debilitar o Partido Democrata. "A recusa da derrota serve para Trump construir a própria base política, sob o argumento de que a eleição foi roubada. Ele também deseja arrecadar dinheiro para pagar a dívida de sua campanha e bancar os advogados. Também age dessa maneira para lidar com as próprias inseguranças psicológicas em relação a ser um perdedor", explicou.

Diretora do Projeto Transição na Casa Branca, um esforço apartidário de especialistas em Presidência dos EUA para fornecer informações sobre mudanças de governo nos EUA, Martha Joynt Kumar recorre a uma tradição para analisar o cenário de incertezas em Washington. "Em meu país, existe uma frase: 'Um presidente de cada vez'. Trump é o presidente até meio-dia de 20 de janeiro, com todos os poderes atribuídos pelo cargo", observa. "Ele pode emitir ordens executivas, leis e regulações para a burocracia, além de conceder perdões. Espero que permaneça ativo ao deixar o cargo", comentou Martha, também autora de Before oath: How George W. Bush and Barack Obama managed a transfer of power ("Antes do juramento: como George W. Bush e Barack Obama administraram uma transferência de poder").

Ao longo da última semana, Trump foi censurado pelo Twitter, ao despejar denúncias sem qualquer embasamento, e assistiu a alguns republicanos se distanciarem de sua rejeição em aceitar a derrota para Biden. "Trump é, certamente, um pato manco. Ele pode não admitir que está cumprindo as últimas semanas de governo, mas o sistema político o tratará dessa maneira pelos próximos 66 dias", admitiu Keith E. Whittington, professor de ciência política da Universidade de Princeton (Nova Jersey).

» Pontos de vista

Por Martha Joynt Kumar

Legado em xeque

"Seria lamentável se Donald Trump não cooperasse com Joe Biden, pois o governo federal fez muito para preparar informações para Biden e para aqueles que servirão em seu governo. Há um legado de presidentes que fornecem continuidade do governo, ao ajudarem a pavimentar o caminho para um novo chefe de Estado, por meio do compartilhamento de informações e tornando a equipe de seu governo acessível àqueles escolhidos por Biden para servirem em uma equipe de transição."

Diretora do Projeto
Transição na Casa Branca e autora de Before oath: How George W. Bush and Barack Obama managed a transfer of power ("Antes do
juramento: como George W. Bush e Barack Obama administraram uma transferência de poder")

Por James Pfiffner

Riscos ao partido

"Joe Biden está certo em dizer que Trump age de forma embaraçosa para os Estados Unidos. Não está claro se uma ação judicial poderia forçar o presidente a cooperar com a equipe de transição de Biden. A decisão formal será em 6 de janeiro, quando o Congresso contabilizará os votos eleitorais. Antes disso, eu espero que outros republicanos coloquem pressão sobre Trump para que ele coopere com Biden. É possível que o presidente republicano continue a se recusar a trabalhar com Biden. Mas, isso apenas terá um reflexo negativo em Trump e nada ajudará o Partido Republicano."Professor emérito da Faculdade de Política e Governo da Universidade George Mason, em Arlington (Virgínia)

Por Keith E. Whittington

Meses de provação

"Os próximos dois meses podem ser muito difíceis. Há muitas coisas que um governo de saída pode fazer que seriam perturbadoras. Algumas possibilidades são, na verdade, contrárias à lei. Os líderes do Congresso deveriam lembrar aos funcionários do governo sobre suas responsabilidades legais nas próximas semanas. O gesto de Trump criará problemas de curto prazo se outras lideranças republicanas, incluindo membros do governo, sentirem que estão de mãos atadas para começar a trabalhar e a planejar um governo Biden.

Professor de ciência política da Universidade de Princeton (em Nova Jersey)