Correio braziliense, n. 20995, 17/11/2020. Artigos, p. 11

 

Saúde pública em Brasília: barco sem rumo em mar revolto

Rodrigo Rollemberg

17/11/2020

 

 

Fazer saúde pública é um dos maiores desafios para qualquer governante, especialmente em Brasília, que reúne as competências de estado e de município e onde mais de 70% da população depende exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS). Em tempos de pandemia, as dificuldades aumentam. Todo grande desafio requer planejamento, humildade e respeito, tal como faz o bom marinheiro ao enfrentar o mar.

Nosso governo fundamentou-se em três grandes pilares no planejamento da saúde. Primeiramente blindamos os gestores de interferência política que pudessem dificultar a tarefa, em si já suficientemente complexa, cercando-nos de quadros técnicos e compromissados com o SUS. Em segundo lugar, demos efetiva prioridade à atenção primária, que é a base de qualquer sistema de saúde, normatizando, consolidando e ampliando a Estratégia Saúde da Família, o que levou ao aumento da cobertura, de pífios 30% para perto de 70% da população do DF. Por fim, implementamos um novo modelo de gestão no Hospital de Base, nossa maior unidade de saúde, que passou a ser gerido como serviço social autônomo, gestão fundamentada em metas e indicadores de resultados, com o objetivo de descentralizar e dar agilidade à administração da saúde, sem afastar seu caráter público. Os resultados rapidamente vieram, e planejamos a expansão do modelo para outras unidades. Vale mencionar também a consolidação e ampliação do Hospital da Criança, a informatização dos processos internos, a criação do Complexo Regulador em Saúde, para garantir justiça e transparência no acesso aos recursos escassos, e a sistematização das normas de contratação pública. Ao final, conseguimos entregar a Secretaria de Saúde para nossos sucessores sem dívidas e com todos os contratos vigentes, situação bem diferente da que encontramos.

O atual governo nunca teve projeto para a saúde. O compromisso de campanha foi reverter o modelo do Instituto Hospital de Base, o que se mostrou mais um estelionato eleitoral, uma vez que o primeiro projeto de lei enviado para a Câmara Legislativa foi justamente o que ampliou o modelo para Santa Maria e para as UPAs. No entanto, evidentemente o novo modelo não basta. Ele é mero instrumento. É necessário ter uma gestão técnica, honesta e comprometida para alcançar toda a sua potencialidade.

O governo Ibaneis foi em sentido contrário. Trouxe para a cúpula da saúde pessoas de fora, que não tinham conhecimento sobre a realidade do Distrito Federal, nem tampouco projeto para enfrentar os desafios do SUS na Capital do País. Para a presidência do IGES, que sucedeu o Instituto Hospital de Base, indicou alguém que sequer tinha formação em saúde. Esse mesmo gestor foi nomeado secretário de Saúde durante a pandemia da covid-19 e atualmente está preso na Papuda, acusado de irregularidades em contratações da SES.

A lógica do governo parece ser a da desconstrução cega por razões meramente políticas: tudo que pode levar a marca da gestão anterior deve ser destruído. A expansão da saúde da família parou, assim como a implementação do complexo regulador. O Hospital da Criança tem tido dificuldade em receber os recursos devidos pelo governo. Os dirigentes do IGES, em face da falta de repasses do Buriti, têm falado em devolver o Hospital de Santa Maria e as UPAs, como se a estrutura não fizesse parte do governo, como se não entendessem que isso não resolveria qualquer um dos problemas. Ao contrário, os problemas se agravariam, e não mais se poderia contar com uma das principais armas de gestão para enfrentá-los.

O governo, por incompetência, deixou expirar a validade dos principais contratos da saúde, como limpeza das unidades, alimentação hospitalar, manutenção predial e de equipamentos e oxigenoterapia. Tudo isso em meio à perda do controle da dengue e à atrapalhada condução da pandemia da covid-19, com falta de equipamentos de segurança para os profissionais, doações suspeitas à cidade do governador no Piauí, falta de transparência nas informações, hospital prometido e não entregue, indícios de superfaturamento no hospital de campanha no Estádio Mané Garrincha, compra de testes que não funcionam e que levaram a cúpula da saúde à cadeia.

Esta é a trágica situação da saúde pública de Brasília: barco sem rumo, com um arrogante timoneiro que parece odiar o mar, talvez por não compreendê-lo, talvez por não ter a sabedoria de respeitá-lo, talvez por não ter selecionado bem sua tripulação.