Título: A maldição que ameaça o altiplano
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 13/09/2008, Opinião, p. A8
No círculo vicioso que se fecha sobre a Bolívia, repete-se a saga de um país acostumado a assistir à própria tragédia como se condenado à maldição do subdesenvolvimento e da miséria. Em pleno século 21, não cabe mais discutir questões separatistas como a que sangra a unidade boliviana nesse momento. O que as províncias mais ricas desejam é a divisão pura e simples, como se o país estivesse no ápice de um processo de desintegração natural dadas as circunstâncias históricas. Nada na Bolívia, porém, é o que parece: a elite do país não aceita o lado miserável, embora dependa dele para extrair a própria riqueza. A população pobre, explorada por tantos anos, viu na eleição de um líder sindical a chance de uma redenção. Os dois lados cresceram em poder e importância política apostando em um dia chegar a um impasse e medir forças. Mas esqueceram que a teoria do confronto não tem volta: quando abala as instituições, interrompe as estradas, isola cidades, anula contratos, condena as gerações seguintes à mesma miséria contra a qual seus pais viveram lutando. Isso poucos enxergam.
Os bolivianos sabem hoje que vivem sobre um subsolo rico. O problema é a definição da riqueza. Todos estão de acordo de que pertencem ao povo. Mas há discordâncias a respeito do que se considera como povo. Os habitantes das províncias ricas, como Santa Cruz e Pando, hoje incendeiam o país exigindo compensações pela exploração do gás retirado das profundezas de suas terras. Em uma escala normal, nada que um bom pacto federativo não pudesse resolver, com equalização tributária capaz de estabelecer a justiça social que historicamente sempre passou ao largo dos anseios da população pobre. Porém, para que algo assim ocorra, é preciso que as duas Bolívias se enxerguem como algo complementar, não como uma ficção excludente. O altiplano não é como os Bálcãs, onde etnias, religiões e histórias foram fundidas à força e se desintegraram assim que os grilhões foram afrouxados. Ali, as dificuldades impostas por uma geografia inóspita mas generosa em possibilidades de desenvolvimento exigem que índios e brancos falem a mesma língua, cultuem os mesmos heróis, bebam a mesma bebida e, principalmente, usufruam dos tesouros das profundezas juntos. É preciso que acabe a indiferença que tira a chance de que o bugre boliviano que mora nos casebres de El Alto, a cidade dormitório ao lado de La Paz, consiga ver o filho do milionário da elite branca européia de Santa Cruz de La Sierra como um irmão de sangue. Hoje, são inimigos que buscam o confronto.
É sempre bom lembrar também que o clima incendiário no país é igualmente responsabilidade do mote político adotado para alavancar a candidatura de Evo Morales à Presidência da República. Veterano nas barricadas erguidas contra os governos neoliberais ¿ no qual a chamada Meia Lua, área que reúne as regiões mais ricas, tinha grande poder ¿ Morales galvanizou o histórico sentimento de exploração das massas para dizer que a hora de cobrar a dívida havia chegado. Mas o grande erro foi tentar vender algo que não poderia entregar: dada a profundidade das diferenças sociais, seria lógico crer que ninguém cederia se não à força. Assim, o discurso que serviu para conduzir ao Palacio Quemado, acabou representado pela posse "popular" em uma cerimônia indígena cheia de simbolismos e longe da capital La Paz. Não funcionou como ferramenta de legitimação para o efetivo controle do Estado e ainda deu aos autonomistas a definição exata da entrada em uma fase de exclusão.
A miséria é a grande maldição que inflama os altiplanos bolivianos. Mas ela é produto dos homens e, como tal, pode ser contida. O chamado à razão é inevitável.