O Estado de São Paulo, n.46328, 20/08/2020. Política, p.A12

 

'Não compete a ninguém fazer dossiê'

Rafael Mores Moura

Breno Pires

20/08/2020

 

 

Ao votar pela suspensão de relatórios de pasta da Justiça contra opositores, ministra Cármen Lúcia diz que Estado 'não pode ser infrator'

STF. Relatora do caso, ministra Cármen Lúcia participa de sessão por videoconferência; julgamento será retomado hoje

Relatora de ação que contesta a elaboração de um dossiê sobre servidores públicos opositores ao governo Bolsonaro, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia votou ontem para suspender todo e qualquer ato do Ministério da Justiça de produção ou compartilhamento de informações sobre cidadãos "antifascistas". O procurador-geral da República, Augusto Aras, por outro lado, defendeu o direito do Executivo de colher informações e disse que "relatório de inteligência não se confunde com investigação criminal".

O julgamento será retomado hoje. Pelo entendimento de Cármen, a pasta comandada pelo ministro André Mendonça fica proibida de levantar dados sobre a vida pessoal, escolhas pessoais ou políticas e práticas cívicas exercidas por opositores ao governo. Em um voto com duros recados ao Planalto, a ministra disse que o Estado "não pode ser infrator", ressaltou que "não compete a ninguém fazer dossiê contra quem quer seja" e elogiou a imprensa, que revelou a existência do relatório.

"Não compete a órgão estatal nem a particulares fazer dossiê contra quem quer que seja ou instalar procedimento de cunho inquisitorial. O Estado não pode ser infrator. O abuso da máquina estatal para a colheita de informações de servidores contrários ao governo caracteriza desvio de finalidade", afirmou a ministra, que é a relatora na Corte da ação da Rede Sustentabilidade que contesta a produção do dossiê, revelado pelo portal UOL.

A ministra disse ainda que "todos nós, governantes, governados, agentes e servidores públicos, nos submetemos à Constituição e às leis". "Ameaçados, ou lesados, os cidadãos podem promover questionamento judicial. Sem acesso à Justiça, não há Estado de direito, porque os atos estatais deixam de ser controlados e o poder estatal torna-se absoluto e voluntarioso."

Segundo o Estadão apurou, ao menos quatro ministros já leram o material. Um deles disse reservadamente que o governo tem "domínio" dos acontecimentos no País. Outro magistrado considerou grave o episódio.

Rejeição. Aras pediu a rejeição da ação da Rede. Assim como os 11 ministros do Supremo, o procurador-geral da República também teve acesso à cópia do dossiê. "O Ministério Público não admite que o governo espione seus opositores nem seus acólitos. No entanto, tivemos acesso ao relatório. Nos termos da lei que institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, relatórios de inteligência são comuns para que se avaliem cenários de riscos", disse Aras. "O relatório de inteligência não se confunde com investigação criminal."

Segundo Aras, os dados reunidos no dossiê foram extraídos de fontes abertas a todos os indivíduos, como informações publicadas no Instagram, Youtube e manifestos nas redes. "Portanto, a atividade que poderia ser realizada por qualquer cidadão, com acesso à rede mundial de computadores", observou o chefe do Ministério Público.

Em sua manifestação, Aras apresentou uma informação imprecisa. "Os fatos (desta ação) foram cuidadosamente apurados pela Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, cujo presidente (senador Nelsinho Trad, do PSD-MS) concluiu que: 'Nenhum cidadão teria sido prejudicado pelos relatórios elaborados pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça'", disse Aras.

Apesar da afirmação, a comissão ainda não deliberou sobre a regularidade do procedimento na Seopi; apenas o presidente da comissão, Nelsinho Trad, externou sua opinião, em entrevista à Rádio Eldorado.

Divergências

"O abuso da máquina estatal para a colheita de informações de servidores contrários ao governo caracteriza desvio de finalidade."

Cármen Lúcia

MINISTRA DO SUPREMO

"Nos termos da lei, relatórios são comuns para que se avaliem riscos. Relatório de inteligência não se confunde com investigação criminal."

Augusto Aras 

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA