O Estado de São Paulo, n.46329, 21/08/2020. Economia, p.B14

 

Sem controlar vírus, devastação será muito maior

John M. Barry

21/08/2020

 

 

Autor de 'A Grande Gripe' alerta governo americano de que saúde e economia são 'parceiras de dança e é a saúde que dá o ritmo'

"A humanidade não consegue suportar muita realidade". Foi o que disse o poeta T.S. Eliot. É uma explicação apropriada para o fracasso da Casa Branca em reagir adequadamente à pandemia que varreu os Estados Unidos e o resto do mundo.

Mesmo agora que a realidade continue se intrometendo, o presidente Trump segue, em grande medida, ignorando ou desautorizando seus conselheiros médicos e científicos. E o resultado é que a economia, a única coisa com a qual ele parece se preocupar, a única coisa que ele esperava que o levasse a um segundo mandato, está sendo devastada.

Como demonstram a história e os dados de hoje, a saúde e a economia não são antagônicas: são parceiras de dança, e é a saúde pública que dá o ritmo. Quanto mais seguras as pessoas se sentem, mais se dedicam às atividades econômicas.

Um estudo recente sobre a pandemia de influenza de 19181919, realizado por um membro do conselho do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) e por economistas do Fed e do MIT, comparou cidades que impuseram medidas de saúde pública rigorosas – entre elas o fechamento de escolas e igrejas, proibições a reuniões públicas, restrições aos horários comerciais e quarentenas – com cidades que estabeleceram menos restrições e se reabriram mais rapidamente. As cidades mais rigorosas não apenas tiveram menos mortes, mas experimentaram "um aumento relativo na atividade econômica a partir de 1919".

A contenção do vírus permitiu que muitas economias europeias se recuperassem muito melhor do que a americana. Veja, por exemplo, o caso da Alemanha, que está com uma taxa de desemprego de 6,4%. A taxa dos EUA é de 10,2%. Em março e abril, de acordo com a empresa de reservas OpenTable, o movimento nos restaurantes alemães e nos americanos estavam parecidos, com queda de mais de 90% em relação ao mesmo período do ano anterior. Desde então, abriu-se uma grande diferença: dados de 16 de agosto (os mais recentes até a publicação deste artigo) mostram que os restaurantes alemães tiveram 9% mais movimento do que no ano passado, antes da pandemia, enquanto os restaurantes americanos caíram cerca de 50%.

Em junho, o Banco Mundial estimou que o PIB deste ano cairá no mínimo 5,2% e provavelmente muito mais. O Gabinete de Orçamento do Congresso calcula que o PIB americano terá um desempenho ainda pior, com queda de 5,9% no ano, mesmo depois de levar em consideração o crescimento de mais de 20% projetado para o terceiro trimestre. Mas essa projeção pressupõe o controle do vírus, o que por enquanto não passa de uma hipótese.

De fato, um modelo do Morgan Stanley prevê que, de acordo com as políticas atuais, os EUA estarão no caminho para contabilizar 150 mil novos casos por dia ainda este ano. E esse número nem faz parte do pior cenário. Quando as temperaturas caírem, mais pessoas estarão em áreas mal ventiladas, onde a transmissão também é mais provável. Se os EUA entrarem no outono com os novos casos diários na casa das dezenas de milhares, como está acontecendo

agora, os números podem explodir e a previsão do Morgan Stanley pode se tornar realidade. Considerando nossos esforços de combate à pandemia até aqui, não temos muitos motivos para otimismo.

Se esse cenário de fato acontecer, a economia não vai se recuperar. Foi o que disse recentemente Jerome Powell, presidente do Fed. "O caminho da economia no futuro está extraordinariamente incerto e dependerá, em grande parte, de nosso êxito em manter o vírus sob controle", disse ele em uma entrevista no dia 29 de julho. E ele acrescentou: "Até que as pessoas tenham certeza de que podem voltar a se dedicar a uma ampla gama de atividades com segurança, a recuperação total é improvável".

Mas a contenção do vírus e a confiança que a acompanharia ainda estão muito distantes. Para promover a retomada da economia precisamos exatamente das mesmas três medidas necessárias para o controle do vírus: primeiro, exigir maior compromisso com a higiene pessoal, o distanciamento social, o uso de máscaras e o evitar das multidões; segundo, montar uma cadeia de suprimentos e infraestrutura de pessoal para fazer a testagem e o rastreamento de contato necessários; e, terceiro, prescrever o remédio amargo das paralisações regionais.

O mesmo modelo do Morgan Stanley que prevê que os EUA podem vir a registrar 150 mil casos por dia também apresenta um cenário "otimista", no qual a contagem de casos no país declina para os níveis europeus. Mas, para que isso acontecesse, os pesquisadores que criaram o modelo partiram do pressuposto de que haveria "restrições mais rígidas e intervenções mais amplas", como lockdowns "semelhantes" aos impostos pela China e pelos principais países da União Europeia.

Sem uma liderança ativa e assertiva na Casa Branca, não conseguiremos chegar a esse ponto e – a realidade, mais uma vez – não há a menor indicação de que isso vai acontecer.  / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

JOHN M. BARRY É PROFESSOR DA ESCOLA DE SAÚDE PÚBLICA E MEDICINA TROPICAL DA UNIVERSIDADE DE TULANE E AUTOR DE 'A GRANDE GRIPE'. A HISTÓRIA DA GRIPE ESPANHOLA, A PANDEMIA MAIS MORTAL DE TODOS OS TEMPOS.

Advertência

"O caminho da economia no futuro está incerto e dependerá, em grande parte, de nosso êxito em manter vírus sob controle."

Jerome Powell

PRESIDENTE DO FED