Título: O primeiro desafio para a Unasul
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 17/09/2008, Opinião, p. A8
Passaram-se anos até que a América do Sul pudesse livrar-se das ditaduras que dominaram o continente, sobretudo na segunda metade do século 20. O custo foi alto, com opressão e mortes. Por isso, faz sentido o apoio que nove presidentes de países do bloco, reunidos em Santiago do Chile, na primeira cúpula da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), deram ao governo Evo Morales, legitimamente eleito e confirmado em um referendo popular realizado há pouco tempo. Tirando os exageros antiimperialistas do coronel Hugo Chávez ¿ que procura enxergar nos levantes bolivianos o dedo da política externa americana como forma de capturar a crise para a própria agenda e, com isso, livrar-se do isolamento ¿ os mandatários souberam manter o tom de diálogo que utilizaram para a transição em seus países na hora de apoiar o colega andino.
Melhor ainda fez o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao assumir a liderança do processo de defesa da democracia. No caso da Bolívia, a participação do Brasil é uma garantia histórica. É inadmissível que a ordem constitucional continue ameaçada pelo levante dos derrotados na Meia-Lua boliviana, a parte baixa ¿ e mais rica ¿ do país. O recado brasileiro esvazia o pendor pela truculência e reforça as instituições. Mal chegou a Santiago, Lula foi direto ao assunto e admitiu que a pobreza do país vizinho é um imenso estopim para tentativas de golpe. Por isso, imediatamente prestou solidariedade ao colega eleito e pediu paz para que os bolivianos possam consolidar a sua ainda frágil democracia. Num país que tem em seu histórico mais sucessões violentas do que democráticas, o apoio da maior nação do continente não deve ser desprezado. A tomada da dianteira do processo de pacificação boliviana pelo presidente brasileiro é mais um avanço no sentido de reocupar o espaço que chegou a ter como expoente o radicalismo bolivariano de Chávez.
Ao apoio de Lula somaram-se os de Cristina Kirchner (Argentina), Álvaro Uribe (Colômbia), Rafael Correa (Equador), Fernando Lugo (Paraguai), Tabaré Vázquez (Uruguai) e Hugo Chávez (Venezuela), este premido por cláusulas da aliança. Mesmo assim, a unanimidade reforça a certeza de que a guerra civil isolaria a Bolívia, aumentando ainda mais as dificuldades econômicas de nosso vizinho. Não à toa, é cláusula pétrea no termo de criação da Unasul. Não se deve esquecer que tal atitude também ajuda a blindar o continente de eventuais aventureiros.
Mas ainda falta muito. É verdade que os próprios bolivianos se dividem sobre o real objetivo do levante, que deixou mortos e feridos e parece, neste momento, ter arrefecido. Parte dos formadores de opinião aposta em tentativa de golpe; parte afirma que tudo não passa de uma espécie de aviso a Evo Morales de que uma eventual centralização de La Paz não será mais aceita pela população. Por tal motivo, Lula deve manter-se firme no papel de principal interlocutor do regime boliviano. Afinal, transita bem entre os governos de esquerda, que não têm a simpatia dos Estados Unidos, e até mesmo entre aqueles considerados de direita, como o do conservador Álvaro Uribe, da Colômbia. Fora o fato de ter uma espécie de green card americano, que aposta na mediação brasileira para manter a América do Sul livre do extremismo chavista. Neste momento de tensão, Lula fez bem em manter a serenidade e esvaziar a tensão que partiu tanto de Evo quanto de Chávez, que expulsaram os embaixadores americanos de seus respectivos países e sofreram retaliações por gestos tão pirotécnicos quanto inúteis. Não é hora de bravatas, e a democracia da América do Sul agradece. Que o equilíbrio e a serenidade sejam dominantes durante a crise que assola os bolivianos.