O Estado de São Paulo, n.46333, 25/08/2020. Política, p.A4

 

Bolsonaro ignora reação e reforça ataque à imprensa

Julia Lindner

Jussara Soares

Rafael Moraes Moura

João Ker

Pedro Prata

25/08/2020

 

 

Executivo. Após ameaçar repórter de agressão, presidente ofende jornalistas em evento sobre a covid-19; fatos levam à 3ª maior onda de repercussão negativa nas redes sociais

Cerimônia. Presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, onde foi realizado o encontro 'Brasil vencendo a covid-19'

O presidente Jair Bolsonaro reforçou ontem ataques à imprensa durante um evento no Palácio do Planalto sobre a pandemia do coronavírus. Ao dizer que foi alvo de "deboche" quando declarou que seu "histórico de atleta" impediria uma infecção mais grave pela covid-19, Bolsonaro afirmou, dirigindo-se a jornalistas: "Aquela história de atleta né, que o pessoal da imprensa vai para o deboche, mas quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor". Ministros do Supremo Tribunal Federal e políticos reagiram e criticaram o comportamento do presidente.

Anteontem, durante agenda em Brasília, Bolsonaro já havia ameaçado de "porrada" um repórter do jornal O Globo que o questionou sobre depósitos feitos pelo ex-assessor Fabrício Queiroz à primeira-dama Michelle Bolsonaro. Essa ameaça e o episódio de ontem levaram à terceira maior onda de repercussão negativa nas redes sociais desde o início da pandemia. Em reação, perfis bolsonaristas passaram a compartilhar um vídeo com legendas falsas sugerindo que o repórter de O Globo teria provocado o presidente com uma citação à filha dele .

No encontro de ontem no Planalto – chamado de "Brasil vencendo a covid-19" – Bolsonaro não fez qualquer menção às vítimas do novo coronavírus ou a seus familiares, disse que a imprensa só sabe "fazer maldade" e defendeu o uso da hidroxicloroquina no tratamento precoce da doença. A substância, no entanto, não tem eficácia comprovada para a covid-19 e já foi descartada de testes da Organização Mundial de Saúde (OMS). Além disso, o Brasil registra 115 mil mortes decorrentes do coronavírus e está há cem dias sem ministro da Saúde. O interino da pasta, Eduardo Pazuello, não compareceu ao evento, pois estava em viagem ao Ceará.

Participaram da cerimônia médicos que defendem o uso da hidroxicloroquina, como Nise Yamaguchi. Outro defensor do medicamento, o ex-ministro da Cidadania e deputado Osmar Terra (MDB-PR) ganhou lugar de destaque no encontro. Sobre ex-ministros da Saúde que deixaram o cargo no meio da pandemia, como Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, Bolsonaro declarou: "Assim como se muda de médico, eu mudei de ministro". Ao fim do evento, presidente e médicos formaram aglomeração para tirar fotos. Todos usavam máscaras.

'Desapreço'. O decano do Supremo, Celso de Mello, disse ontem ao Estadão que ficou constrangido com a conduta de Bolsonaro, que, para ele, revela "perigoso desapreço e claro desrespeito pela liberdade de informação e de imprensa".

"O direito ao livre exercício da imprensa é uma condição básica e essencial para o gozo e preservação das liberdades fundamentais em uma sociedade democrática. A grosseria constitui censurável falta de compostura, imprópria e indigna de quem exerce tão elevado cargo na hierarquia da República", afirmou.

Colega de Corte do decano, o ministro Gilmar Mendes disse considerar "inadmissível censurar jornalistas pelo mero descontentamento com o conteúdo veiculado". "A liberdade de imprensa é uma das bases da democracia", escreveu Gilmar no Twitter. Bolsonaro é alvo de inquéritos no Supremo.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou ao jornal O Globo que a liberdade de imprensa é inegociável e disse esperar que o presidente "retome a postura mais moderada que vinha mantendo". Ontem, em entrevista à Rádio Gaúcha, Maia disse esperar que o "episódio não se repita". "Não ajuda. Vai criando tensionamentos." Partidos como PSDB, MDB, PT e PSB cobraram uma retratação do presidente.

Adversário político de Bolsonaro, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), fez duras críticas ao presidente. "Nem o senhor nem ninguém vai ameaçar a democracia. A democracia, presidente, é mais forte que o senhor. Ela já resistiu a outras ameaças. E resistirá também ao seu ímpeto de flertar com o autoritarismo", afirmou o tucano ontem durante entrevista coletiva.

O ministro Fábio Faria (Comunicações) foi ao Twitter dizer que "torcedores do caos perderam". "A paz continua", escreveu. Procurado, o Planalto não se manifestou até a conclusão desta edição.

OS ATAQUES

• 'Homossexual terrível'

Em dezembro, um jornalista perguntou a Bolsonaro se ele tinha comprovante do empréstimo de R$ 40 mil que disse ter feito a Fabrício Queiroz. "Oh, rapaz, pergunte para a tua mãe o comprovante que ela deu ao teu pai, está certo?", respondeu. A outro jornalista, disse: "Você tem uma cara de homossexual terrível".

• 'Cala a boca'

Questionado se havia ordenado a troca do superintendente da Polícia Federal do Rio, Bolsonaro gritou "cala a boca" três vezes para o jornalista que fez a pergunta, e deixou o local sem responder.

• Mentiu e chamou jornalista de mentirosa

Em março, o presidente acusou a colunista do Estadão e editora do site BR Político, Vera Magalhães, de ter mentido em suas reportagens imputando afirmação nunca escrita por ela.

• Insinuação sexista

Bolsonaro fez insinuações sobre o trabalho de uma jornalista, em fevereiro deste ano. "Ela queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim."

• Impulsionou informação falsa sobre jornalista

Em março de 2019, usou informação falsa para atribuir a uma jornalista do Estadão declaração de que teria "intenção" de "arruinar" Flávio Bolsonaro e o governo.