O Estado de São Paulo, n.46337, 29/08/2020. Metrópole, p.A28

 

Saúde quer que polícia seja avisada sobre aborto legal

Mateus Vargas

29/08/2020

 

 

Nova portaria obriga profissional de saúde a fazer notificação sempre que atender vítimas de estupro que buscarem aborto legal

O Ministério da Saúde publicou ontem portaria que obriga médicos e profissionais de saúde a notificarem a polícia ao atender vítimas de estupro que desejam realizar um aborto legal. A portaria afirma que é obrigatório o aviso à autoridade policial "dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro".

Pelas normas em vigor, a interrupção da gravidez é permitida em três situações: quando a gravidez é resultado de violência sexual, se não há outro meio de salvar a vida da gestante e em casos de fetos com anencefalia.

Em reação à decisão, nas redes sociais, a antropóloga e professora da Universidade de Brasília Debora Diniz definiu a medida como "perversa". Ela "revoga portaria de aborto legal e confunde profissionais de saúde com profissionais de segurança pública", escreveu Diniz.

A mudança ocorre dias após o caso envolvendo uma criança de 10 anos estuprada e engravidada pelo tio no Espírito Santo. Os dados da menina foram vazados nas redes pela extremista Sara Giromini. No dia em que ela foi internada, no Recife (PE), para interromper a gravidez de forma legal, um grupo contra o aborto foi para a frente do hospital e tentou impedir o procedimento.

A nova portaria muda regras de 2005 do ministério. A pasta também fez alterações no "termo de consentimento" que deve ser assinado pela vítima. Este documento apresenta uma lista de riscos e desconfortos causados pela interrupção legal da gravidez, mas passou a dar mais detalhes sobre efeitos da operação às vítimas de estupro.

A nova regra também determina que os profissionais de saúde devem "informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada".

'Maus-tratos'. Para Débora Diniz, a mudança impõe medidas de "maus-tratos" às vítimas de estupro. "Uma delas é o uso de tecnologia médica para assustá-las: a oferta de visualizar o embrião ou feto não é para cuidar da vítima, mas para ideologizar o aborto." Na mesma direção, em São Paulo, vai o diretor do Hospital Pérola Byington, unidade de referência em aborto legal. O ginecologista André Malavasi afirma que algumas vítimas de estupro podem se sentir constrangidas ou ameaçadas ao buscar o atendimento com a nova regra. "Para nós vale a palavra da vítima. Não é necessário boletim de ocorrência ou prova criminal, mas pedimos para ela assinar o termo ( previsto desde 2005 em portaria)."

Em nota, o Ministério da Saúde argumenta que a nova portaria adapta normas da pasta à Lei 13.718/2018, que tornou o estupro um crime apurado por ação penal pública incondicionada, ou seja, "sem depender de prévia manifestação de qualquer pessoa para ser iniciada". De sua parte, o Conselho Federal de Medicina afirmou apenas que ainda está analisando o texto.

Reação. Ontem mesmo a bancada feminina do Congresso movimentou-se para tentar impedir a mudança. Deputadas como Jandira Feghali (PC do B), Luiza Erundina (Psol) e Lídice da Mata (PSB), entre outras, apresentaram projeto de decreto legislativo para suspender a portaria do Ministério da Saúde. "Qualquer norma que ofereça constrangimentos para o exercício de um direito deve ser prontamente contestada. As mulheres vítimas de violência sexual são constantemente 'revitimizadas' ao enfrentar o caminho para fazer valer sua opção pelo aborto legal", afirma o projeto das deputadas.

Ideologia

• "A oferta de visualizar o embrião ou feto não é para cuidar da vítima, mas para ideologizar o aborto."

Débora Diniz

PROFESSORA DA UNB