O Estado de São Paulo, n.46338, 30/08/2020. Espaço Aberto, p.A2

 

A voz mansa de Djalma Marinho

Sergio Fausto

30/08/2020

 

 

O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, é um político competente e estrela em ascensão no atual governo. Com dois mandatos de vereador em Natal e outros dois de deputado federal pelo Rio Grande do Norte, além de cargos importantes no Executivo estadual e federal, não lhe faltam experiência nem DNA: é neto de Djalma Marinho, político potiguar que se destacou na Câmara dos Deputados por mais de três décadas na segunda metade do século 20. O avô de Rogério Marinho não conseguiu se eleger governador de seu Estado, como agora pretende o neto, mas sua biografia revela um tipo de político cada vez mais raro no Brasil: um liberal-conservador culto e educado, que se manteve coerente com suas principais convicções ao longo de 40 anos de vida pública.

Filiado a um único partido entre 1945 e 1964, a UDN, aderiu à Arena quando da imposição do bipartidarismo. Embora membro do partido situacionista, não hesitou em levantar a sua voz mansa contra as piores arbitrariedades do regime autoritário.

Foi assim na conjuntura dramática que levaria à decretação do AI-5, em dezembro de 1968. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, não se dobrou à pressão dos militares que pretendiam processar Márcio Moreira Alves por discurso supostamente afrontoso à honra das Forças Armadas. Com críticas ao governo pela repressão a manifestações estudantis, o parlamentar fluminense conclamara os pais a não autorizarem seus filhos a desfilar no 7 de Setembro e às moças, a não dançarem com os cadetes no baile da Independência.

Em audiência com o então presidente Costa e Silva, Djalma Marinho anunciou que a comissão negaria a licença solicitada pelo Ministério da Justiça para instaurar processo contra o deputado, que gozava de imunidade parlamentar para expressar livremente a sua opinião. Buscou encontrar alternativas para o impasse. Diante da intransigência do general-presidente, fez discurso corajoso da tribuna da Câmara em que se disse um “vassalo da ordem democrática”, recusando-se a cumprir “exigências absurdas”.

A derrota do governo na comissão e no plenário serviu de pretexto para a edição do mais draconiano dos atos institucionais, que fechou o Congresso, suspendeu a imunidade parlamentar, a inamovibilidade e estabilidade de juízes e o habeas corpus, escancarando a ditadura e soltando as rédeas da repressão e da tortura. Marinho perdeu, mas não mandou às favas os escrúpulos de consciência.

Nas eleições legislativas de 1974 sofreu novo revés, dessa vez uma derrota eleitoral. No pleito daquele ano, quando o regime completou seu décimo aniversário, o partido de oposição obteve votação surpreendente para a Câmara (e também para o Senado). Sem reconquistar seu mandato nas urnas, Djalma Marinho foi à tribuna e expressou sua opinião sobre os resultados das eleições. Disse que seu “caráter plebiscitário representava o fato mais relevante dos últimos dez anos” e aconselhou o presidente Ernesto Geisel a rever conceitos e estilos, métodos e práticas, “que haviam sido impostos à nação de cima para baixo, sem debate, sem alternativa”, conforme se lê no verbete dedicado ao parlamentar no acervo do CPDOC da FGV.

De volta à Câmara em 1979, eleito deputado federal nas eleições do ano anterior, Djalma Marinho dedicou-se ao projeto de reforma da Lei Orgânica dos Partidos. Manifestou-se pela liberdade de organização partidária e admitiu a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), afirmando que, como democrata, “teria de conviver com todas as tendências”.

No ano seguinte, lançou-se à presidência da Câmara como candidato dissidente do PDS, sucessor da Arena, defendendo a independência do Congresso. Recebeu votos de alguns de seus colegas de partido e da maioria dos deputados de oposição, mas o vitorioso foi Nelson Marchezan, apoiado pelo presidente João Figueiredo.

Djalma Marinho não teve a força expressiva de Teotônio Villela, seu correligionário na UDN e na Arena, também ele proveniente de um pequeno Estado do Nordeste. Teotônio foi mais vocal e aguerrido na divergência com o regime, do qual se afastou para finalmente se filiar ao MDB, no início de 1979. Ainda no partido do governo, o Menestrel das Alagoas, como o chamaram Milton Nascimento e Fernando Brant, confrontou em andanças pelo País e discursos no Senado a legitimidade do autoritarismo e visitou presos políticos na campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita. A seu modo, porém, Djalma Marinho também deixou sua marca no reencontro do País com a democracia.

Marinho morreu em dezembro de 1981, dois anos antes de Teotônio. Não sei o que pensaria sobre a proximidade política do neto com um político como Jair Bolsonaro. Suspeito que ficaria vexado. Afinal, era um homem culto, educado, conservador, mas liberal e tolerante. Perdeu a eleição para o governo de seu Estado em 1960, derrotado por Aluísio Alves, mas deixou uma biografia digna de ser lembrada.

Suspeito que ele ficaria vexado pela proximidade política do neto com um político como Bolsonaro

DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP