Título: Nova velha potência exige respeito
Autor: Duarte, Joana
Fonte: Jornal do Brasil, 21/09/2008, Internacional, p. A21

Aliança crescente entre Rússia e América Latina aponta insatisfação com mundo unilateral

A História do século 20 ensina que as rixas entre Estados Unidos e Rússia reverberam na América Latina. Por isso, causou preocupação em alguns setores o fato de o Kremlin estar fazendo exercícios militares na costa venezuelana, num momento de crescente tensão entre Washington e Moscou. No entanto, analistas deixam de lado o alarmismo. Acreditam que as renovadas desavenças entre os antigos líderes bipolares não vão ressuscitar a Guerra Fria. Pensar assim seria desconsiderar as mudanças ideológicas, econômicas e políticas que ocorreram desde então, principalmente na Rússia.

¿ Essa retórica é irresponsável e reflete como políticos estão cada vez mais secundários à mídia, que fabricou essa "nova guerra" fria para atrair o público ¿ argumentou Anna Vassilieva, dirigente do Programa de Estudos Russos do Instituto Internacional de Monterey (Califórnia).

Há uma semana, a Rússia aterrissou dois de seus bombardeiros estratégicos Tupolev TU-160 na principal base aérea da Venezuela, a 60 km de Caracas, para realizar vôos de treinamento. Na mesma ocasião, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, anunciou que em novembro também realizaria exercícios com a marinha russa no mar caribenho, o que ocasionaria o envio de mais quatro navios russos à região e representaria a primeira retomada da presença militar de Moscou no Caribe desde o fim da Guerra Fria.

¿ Os "piti-yankees" ¿ disse o presidente venezuelano ¿ criticam o fato de fazermos manobras conjuntas com a Rússia, mas não dizem nada sobre a decisão dos EUA de reativar, após 60 anos, sua IV Frota militar e manter uma base ali mesmo.

Durante uma sessão do Parlamento do Mercosul, na segunda-feira, a senadora brasileira Marisa Serrano (PSDB-MS) criticou essa súbita militarização da América Latina.

¿ Se não queremos os americanos, não queremos os russos também. Não desejamos uma nova Guerra Fria, nem ser palco para uma disputa entre nações em busca do poder ¿ disse.

Semelhanças

A Guerra Fria foi acima de tudo uma guerra entre ideologias políticas contrárias, que já não existem mais entre a atual Rússia capitalista e a superpotência americana.

¿ Não creio que estamos diante de uma nova Guerra Fria ¿ afirmou também Teodoro Petkoff, político, ex-guerrilheiro e atual presidente do jornal venezuelano de oposição, Tal Cual, que chegou a disputar a presidência venezuelana com Chávez em 2006. ¿Talvez seja uma guerrita fria, sem fundamentos ideológicos ¿ brinca.

Segundo Petkoff, Chávez está sempre disposto a ser o "peão da Rússia", por viver uma fantasia de que estaria se colocando sob a proteção do influente país e possivelmente vir a tornar a Venezuela uma potência atômica.

¿ É indício da condição psicopata de Chávez ¿ garante Petkoff ¿ Não vai haver um confronto direto entre a Rússia e os EUA. De qualquer maneira, isso não tem nada a ver com a Venezuela. Chávez se imagina um novo Fidel, mas suas relações com a Rússia são fracas, se não totalmente simbólicas, quando comparadas às relações da extinta União Soviética com o regime cubano.

Sobe agora no palco a Bolívia, com sua crise separatista e a revolução indigenista de Morales, que acaba de expulsar a sangue frio o embaixador americano, acusando-o de conspirar de forma tipicamente imperialista para tirá-lo do poder. No mesmo impulso, Venezuela expulsa também agentes da DEA, agência americana de combate à produção e ao tráfico internacional, ao mesmo tempo que acena para a cooperação russa no novo combate ao narcotráfico.

Talvez essa nova Guerra Fria de que tanto se fala se caracterize não mais por ideologias sobre política interna, focando-se agora preferencialmente na política externa. Por um lado, a influência americana, que se auto justifica como necessária para "preservar democracias" e, de outro, a luta de países em escalada pelo respeito à soberania territorial.

¿ A atual confrontação entre EUA e Rússia é pura retórica, com alguns respingos belicosos ¿ opina o historiador da USP, Angelo Segrillo. ¿ Eu não diria que é uma nova Guerra Fria.

Segrillo explica que a Rússia, que sempre foi uma potência, mas que passou por uma crise profunda durante o período Yeltsin, no desmantelamento da União Soviética, está agora recobrando seu status antigo e voltando a agir como antes. O problema surge porque o Ocidente ainda está com dificuldades de lidar com uma nova Rússia.

¿ Putin é muito pragmático. Para ele não interessa bater de frente com os EUA, pois está integrado no mercado mundial, mas faz questão que seu país seja respeitado como potência. A Rússia considera, por exemplo, que as nações vizinhas, que integravam a antiga União Soviética, são de influência russa, implicitamente. Portanto, quando há uma confusão na Geórgia, cabe a Rússia conduzi-la à pacificação.

Duplo sentido

Para Segrillo, as recentes abordagens russas na América Latina têm dois aspectos: o primeiro é econômico. A Rússia quer recobrar parte de seu prestígio e interagir em um mundo multilateral, acabando com o monopólio estabelecido pelos Estados Unidos.

¿ A Rússia quer alianças com outros países. Nesse sentido é que se explicam as ligações com a Venezuela, a Bolívia, o Irã, e por aí vai. A Rússia tenta uma estratégia para estabelecer um mundo multipolar, com muitos jogadores.

O segundo aspecto é a intervenção militar russa, um pouco exacerbada, no conflito com a Geórgia e o envio de bombardeiros à Venezuela, que revelam sua vontade de recobrar a antiga reputação.

¿ Foi um movimento tático de se aliar à Venezuela e à Bolívia, uma resposta enérgica para criticar os EUA no momento, e não uma estratégia de longo prazo. Os EUA fazem exercícios militares no mundo todo. A Rússia está apenas retomando uma atitude semelhante à que tinha antes da crise que sofreu nos anos 90.

Segundo Segrillo, o temor histórico da Rússia é ver a expansão da aliança militar da Otan cercar seu vasto país. Nisso peca Bush, que, ao contrário da União Européia, por exemplo, não exprime nenhuma reticência em considerar a inclusão da Geórgia ou Ucrânia na Otan.

¿ O ponto fundamental é que o Ocidente precisa se adaptar à nova Rússia do século 21. Ela está se recuperando como potência, enquanto os EUA continuam a tratá-la como se continuasse completamente debilitada.