O globo, n.31895, 03/11/2020. Economia, p. 25

 

Pobreza e saúde

Cássia Almeida 

Carolina Nalin 

03/11/2020

 

 

A desigualdade no Brasil é responsável por 30% da mortalidade de crianças de até 5 anos. Esta é uma das conclusões de um novo indicador criado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Índice Brasileiro de Privação (IBP), que será lançado hoje. Ele combina informações como renda, escolaridade e saneamento e correlaciona com dados de saúde, funcionando como um retrato de más condições de vida da população.

— Há uma alta proporção de óbitos atribuídos à desigualdade. Se todos vivessem com o Índice de Privação muito baixo, o número de mortes infantis seria 30% menor — afirma Elzo Pereira Pinto Júnior, pesquisador do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs), da Fiocruz.

O IBP é uma espécie Índice de Desenvolvimento Humano(ID H ), medido pela ONU e que compara a qualidade devida de vários países, porém mais voltado para saúde. Ele une renda per capita (proporção da população ganhando até meio salário mínimo), escolaridade (analfabetismo a partir dos 7 anos) e acessoa água e saneamento. É possível obter resultados por bairros e pequenas áreas:

—O índice tem extrema potencialidade de identificar as áreas desiguais do ponto de vista da privação material, de identificar as populações mais vulneráveis e direcionar políticas mais equita tivas—afirma a Maria Yury Ichihara, vicecoordenadora do Cidacs.

O índice vai de muito baixa a alta privação. Quanto mais alta, piores são as condições de vida na região.

O estudo da Fiocruz mostra ainda que crianças de até 5 anos que moram em bairros, cidades e estados com alto Índice de Privação têm duas vezes mais chance de morrer por doenças infecciosas, como diarreias, do que as que moram em regiões onde as condições de renda, escolaridade e habitação são melhores. E os números variam mesmo em áreas próximas:

— No mesmo bairro, pode haver realidades diferentes.

Coma pandemia, a pobreza e ades igualdade aumentaram, quando se desconsidera o efeito do auxílio emergencial. E essa piora nas condições de vida terá impactos na saúde:

— Existe uma sinergia entre pobreza e exposição maior a doenças, em função das condições de vida, moradia e trabalho — afirma a sanitarista Ligia Bahia, professora da UFRJ.

Como é baseado no Censo, o índice da Fiocruz consegue refletir essa realidade socioeconômica por microrregiões, o que é fundamental para identificar os locais que podem ter maior incidência de doenças, de acordo com o coordenador de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Iesc), Rudi Rocha:

— Há bolsões de doenças infecciosas que ainda são muito relevantes. Tanto as doenças infecciosas como as provocadas por causas externas de mortalidade estão muito correlacionadas com a privação socioeconômica.

O Índice de Privação, na opinião de Rocha, com uma metodologia mais voltada para determinantes da saúde, como acesso a água e saneamento, será um instrumento vital para os gestores públicos:

—Chegar mais perto dos determinantes socioeconômicos da saúde é muito importante.

POLÍTICAS DIRECIONADAS

Para Ligia, o índice permite que se faça uma política pública baseada em evidências, o que é fundamental, principalmente nesses tempos de pandemia:

— Sabemos que há uma relação entre pobreza e mais mortes por doenças, mas, ao apontar exatamente em qual região ou bairro a situação socioeconômica é pior, é possível dirigir as políticas sociais para esses grupos e avançar na saúde.

Moradora de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, Carolaine das Chagas, de 21 anos, convive desde os 9 com o esgoto a céu aberto ao lado de casa. Sempre que chove, o valão transborda e forma poças nas ruas. Há dois anos, sua casa chegou a ser inundada. Ela mora com afilha, de 7 anos, a mãe, de 39, e a irmã, de 15:

— Aqui sempre foi assim. Não tem esgoto, e agente acaba ficando sem ter par aonde ir nomeio daquela água podre. A prefeitura colocou água encanada, mas os canos passam perto do valão, e a água para beber vem suja. Agente enche a garrafa de água e pinga três gotas de remédio para limpar.

A situação econômica da família piorou na pandemia. Carolaine, que só cursou até a 8ª série, perdeu as faxinas que fazia. A mãe, que é diarista, também está desempregada. A jovem está preocupada com fim do auxílio emergencial e a proximidade das chuvas de verão:

— Este ano, só Deus na causa, porque os serviços pararam.

Ligia destaca que os serviços públicos não existem simultaneamente nas áreas mais pobres:

— Ora tem água, ou tem luz, ou saneamento, ou escola. Se as políticas fossem integradas, haveria menos mortes, e as crianças viveriam.