O globo, n.31896, 04/12/202. Economia, p. 25

 

Montanha-russa

Raphaela Ribas

Carolina Nalin 

João Sorima Neto 

04/12/2020

 

 

Nem mesmo as previsões mais ousadas dos especialistas dariam conta de um ano como 2020. Afetada pela pandemia, a economia viveu uma trajetória de montanha-russa, com leve queda no primeiro trimestre, derrocada no segundo e uma recuperação de 7,7%  no terceiro que ainda não compensou os danos causados pela crise da Covid-19.

Essa oscilação brusca e atípica da economia brasileira afetou o desempenho de empresas, o consumo familiar, os planos de compra e a rotina de trabalho de todos os brasileiros.

Cinco histórias mostram como foi afetada a vida de empresários, donos do próprio negócio, profissionais liberais, trabalhadores informais e beneficiários de auxílio.

Há quem tenha conseguido encontrar novas oportunidades de ganho em um ano difícil para a economia. Mas na maioria dos relatos prevalece a incerteza sobre como será a recuperação nos próximos meses, diante do novo avanço da Covid.

Beneficiária do auxílio emergencial

Joyce Oliveira com os filhos Foto: Hermes de Paula / Agencia O Glob / Agência O GloboJoyce Oliveira com os filhos Foto: Hermes de Paula / Agencia O Glob / Agência O Globo

Na casa de Joyce Oliveira, de 35 anos, em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio, o valor do Bolsa Família acrescido do auxílio emergencial e da cesta básica que recebe, com certa frequência, da escola pública dos filhos, é o que compensa a perda de renda desde março.

Antes da pandemia, no primeiro trimestre, o marido de Joyce, Leandro da Silva, de 35 anos, conseguia preencher a agenda de segunda a sexta com os serviços como mecânico. Mas eles trabalhos sumiram com a chegada da Covid-19:

— Antes já era difícil, com a pandemia apertou ainda mais — diz Joyce.

Durante o segundo trimestre, não apareceram ofertas de trabalho. Aos poucos, nos últimos meses, surgiram alguns bicos. Ainda assim, a procura não é a mesma de antes. Sem a perspectiva de um emprego formal até o fim do ano, o fim do auxílio preocupa:

— Ele (Leandro) quer muito assinar a carteira, mas não encontra emprego de carteira assinada. Eu sei fazer cabelo, aí às vezes aparece alguém e eu faço. Mas o serviço precisa ser na minha casa por conta dos filhos ou então deixo com a minha mãe. O que eu penso agora é o ano que vem. A gente fica com a cabeça a mil, ele fica desesperado porque não tem serviço — conta ela, que tem cinco filhos, sendo a mais nova de um ano e meio de idade, e a mais velha, de 12.

Profissional liberal

Aline Félix Foto: Hermes de Paula / Agência O GloboAline Félix Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

A expectativa para o ano de 2020 era alta para a oftalmologista Aline Félix, de 46 anos. Ela tinha acabado de investir quase R$ 80 mil na ampliação do consultório onde atende na Tijuca, Zona Norte do Rio. O movimento de pacientes, inclusive, estava de vento em popa no começo do ano.

— Janeiro costuma ser um bom mês porque tem muitas crianças voltando para a escola e fazendo exames de visão, a agenda de pacientes estava completa, com movimento bom. Já tinha pacientes marcados para abril. Aí de repente, veio a pandemia — conta ela, que precisou fechar o consultório por três meses:

— O proprietário da sala me deu um desconto no aluguel neste período, só que depois, para retomar os atendimentos, foi preciso todo um investimento em proteção. A luva, que passei a usar ainda mais, saltou de R$ 22 para 55, o jaleco - que agora preciso trocar a cada quatro horas - triplicou de valor — explica ela, que passou a ter um custo de pelo menos R$ 4 mil com equipamentos de segurança extras.

Mesmo com roupas de proteção, os profissionais do setor de serviços, sobretudo da área da saúde, seguem sob risco constante de contrair Covid-19 durante o trabalho. Foi o que aconteceu com Aline: após três meses de retomada, ela chegou a contrair a doença em outubro, e o consultório voltou a ficar fechado por vinte dias:

— Só tive uma semana útil trabalhada em novembro, então além de ter ficado doente, tive que fechar o consultório. Depois do isolamento, voltei às atividades, mas agora já é dezembro e o movimento será bem menor. Antes da pandemia eu atendia 25 pacientes por dia, agora atendo 12, 13. Não posso ultrapassar isso, caso contrário colocaria em risco os meus pacientes. Como serão os próximos meses? É uma grande incerteza, a gente anda muito tenso.

Com faturamento 40% menor, ela precisou recorrer à ajuda de familiares para pagar as contas. Ainda assim, não conseguirá fechar o ano no azul:
— É uma conta difícil de fechar. Diminui a quantidade de pacientes e aumenta-se o gasto. Ou o governo abre alguma linha de crédito ou incentivo fiscal para o profissional autônomo, microempresário, ou a gente não tem uma perspectiva  para 2021.

Dono do próprio negócio

Romero Fontanive Foto: Arquivo pessoalRomero Fontanive Foto: Arquivo pessoal

Este ano também foi uma montanha-russa para o empresário Romero Fontanive. Ele é dono dos restaurantes Gabbiano Ristorante e Gabbiano Trattoria, ambos na Barra, e foi da possibilidade de fechá-los, em abril, a um faturamento acima de antes da pandemia em um deles no terceiro trimestre.  

— Quando fechamos, em março, achei que seria só um mês e não me desesperei, mas quando vi que não ia acabar tão cedo a pandemia, fiquei assustado. Cheguei a pensar em vender tudo e voltar para Itália, onde fui criado e está a minha família.

No Trattoria, a pancada da pandemia ainda não foi totalmente superada. Como o restaurante fica em um centro comercial, a clientela caiu de cerca de cem para dez pessoas por dia. Mesmo implementando o delivery, hoje a casa não recebe mais do que 40 clientes por dia.  

Já no Gabbiano, passado o aperto do segundo trimestre, quando o faturamento dele chegou a cair 60%, a partir em julho, a situação começou a melhorar e hoje, segundo Fontanive, o faturamento é maior do que o período antes da pandemia. 

— Fizemos o delivery, o qual mantemos, mas o que eu notei é que o tíquete-médio no restaurante aumentou. As pessoas queriam sair de casa e ter uma boa refeição, com mais calma. Antes, nem sempre pediam a entrada e era comum que as pessoas dividissem pratos e levavam o próprio vinho. Agora, não.  

Industrial

Sergio Bocayuva Foto: Arquivo pessoalSergio Bocayuva Foto: Arquivo pessoal

Com quatro unidades industriais em cidades do Rio Grande Sul, a Usaflex, fabricante de calçados, entrou na pandemia em março com a expectativa de terminar o ano no vermelho. O presidente da empresa, Sergio Bocayuva, estava em viagem ao exterior e, quando regressou ao Brasil, viu que a situação seria grave também por aqui.

Ainda em março, a empresa enxugou 500 funcionários de seu quadro de 3,2 mil trabalhadores para se adequar a uma queda de 56% na produção diária de 25 mil pares de sapatos. Com o auxílio emergencial oferecido pelo governo, a partir de abril, a empresa reduziu o quadro de funcionários em mais 300 colaboradores.

— Tivemos que nos adequar de forma rápida. A produção caiu de 25 mil pares diários para 14 mil e, com fechamento de lojas, as vendas caíram, inclusive as exportações para mais de 50 países — disse Bocayuva, lembrando que a marca tem 240 franquias pelo país. 

Para evitar falta de matéria-prima, a Usaflex quitou as dívidas com os fornecedores. Também postergou os compromissos dos franqueados para evitar fechamentos. Bocayuva estimava que a produção e as vendas seriam retomadas em julho, mas isso só começou a acontecer a partir de setembro. Atualmente, elas já correspondem a 74% do que eram antes da pandemia, enquanto a produção já está batendo nos 20 mil pares por dia.

— No Sul e no Sudeste, onde há lojas em shoppings de grandes centros, o movimento ainda não foi retomado totalmente. Mas em lojas de rua do Norte e do Nordeste do país, já temos vendas na mesma base de 2019. Na Black Friday, por exemplo, triplicamos as vendas — explicou o presidente da empresa, lembrando que a Usaflex esperava um crescimento de 50% nas vendas online este ano, mas que o aumento já está em 160% até agora. 

O quarto trimestre, prevê Bocayuva, será bom, por causa do Natal, mas não vai repor a queda das vendas nos piores períodos da pandemia. Mas a empresa já prevê encerrar 2020 no azul, ainda que com uma queda de faturamento entre 25% e 30% em relação ao ano passado. 

Para 2021, as perspectivas já são melhores. A Usaflex já tem pedidos fechados até fevereiro, vai repor em janeiro todos os funcionários que foram afastados e ainda contratar mais 10% de mão de obra. 

— Haverá queda da rentabilidade, mas o resultado será positivo, o que é bom para quem tinha a expectativa de ter prejuízo .

Trabalhador informal

Robert Ramos de Araújo Foto: Arquivo pessoalRobert Ramos de Araújo Foto: Arquivo pessoal

Robert Ramos de Araújo mora em Guapimirim e é motorista há um ano. Ele faz corridas pelo Uber mas sua especialidade são viagens particulares entre o Rio e a Região Serrana, Região dos Lagos e para outros estados.

Quando a pandemia começou, ele ficou totalmente sem clientes e sem renda. Seu ganho média diário, que era de cerca de R$ 300, caiu para zero em alguns dias e R$ 30, no máximo, em outros.

— Fiquei desesperado. Ninguém saia de casa e aí não tinha serviço. Tentei trabalhar com obra e não estavam contratando. Procurei emprego também como motorista de ônibus, que é o que eu fazia antes, e nada também.

Nesse período, ele entrou com o pedido de auxílio emergencial e conseguiu receber por dois meses.

Sua filha, que trabalha com maquiagem, também ficou sem trabalho, uma vez que os salões fecharam. Ela entrou com o pedido de auxílio e conseguiu e recebeu até mês passado.

A partir de maio, porém, foi o oposto para Robert e foram tantos os clientes que o procuraram para ter o serviço privativo que ele chegou a ter que recusar alguns e passar o serviço para colegas.

— As pessoas passaram a me procurar mais porque não queriam andar no coletivo, queriam segurança. Eu ganhei também com as empresas que queriam que os funcionários de Guapimirim e Teresópolis fossem para o Rio mas sem ser de ônibus.

Em setembro, ele conseguiu dar entrada num financiamento da casa própria.

— Eu tentei financiar quando casei, há mais de 20 anos. Na época, eu tinha carteira assinada e achei que seria mais fácil. Que nada! Consegui agora, na pandemia.

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Auxilio emergencial supera perda de massa salarial 

Gabriel Martins 

04/12/2020

 

 

Após queda recorde no segundo trimestre, devido à pandemia, o consumo das famílias voltou a crescer de julho a setembro, registrando alta de 7,6%. O resultado foi muito impulsionado pelo auxílio emergencial, que deve acabar em dezembro, o que aumenta a incerteza sobre a velocidade da recuperação. O indicador é um dos motores da economia, representando cerca de 65% do PIB pela ótica da demanda.

O efeito do auxílio emergencial — que em julho e agosto foi de R$ 600 e em setembro, de R$ 300 —foi tamanho que, segundo projeções do mercado, enquanto a perda de massa salarial até setembro chegou a R$ 180 bilhões, o benefício injetou na economia R$ 210 bilhões no período.

—O auxílio foi bem importante. Vemos que ele foi muito focado na alimentação. Isso beneficia o comércio e a indústria — comentou a coordenadora de Contas Nacionais do IBGE, Rebeca Palis.

Na outra ponta, houve um aumento das reservas por par tedas famílias de maior renda durante a pandemia. De julho a setembro, a taxa de poupança atingiu 17,3% contra 13,7% em igual período de 2019.

— No ano, o consumo das famílias ainda está negativo (-6,3%). Embora vejamos os próximos indicadores econômicos sob a ótica do auxílio reduzido para R$ 300, é preciso levar em consideração a taxa de poupança no terceiro trimestre, que subiu frente a igual período de 2019 — diz Anna Reis, economista-chefe da GAP Asset.

Na opinião de Lilian Ferro, economista do BTG, é necessário cautela para avaliar se a poupança criada nesse período pode compensar o fim do auxílio e manter o consumo em alta:

—Surge a dúvida se, com a vacinação, as famílias que pouparam vão voltar a consumir ou se esse movimento será represado ainda por receios relacionados a saúde.