Valor econômico, v. 21, n. 5162, 07/01/2021. Mundo, p. A12

 

Invasão do Congresso choca os EUA; Biden fala em ataque à democracia

Lindsay Wise

07/01/2021

 

 

O presidente eleito Joe Biden denunciou energicamente a invasão do Congresso, classificando-a de um ataque sem precedentes à democracia dos EUA que “beira a sedição”
Apoiadores do presidente Donald Trump invadiram ontem o prédio do Congresso dos EUA, num cenário caótico, forçando parlamentares a se esconder e suspendendo o debate sobre a certificação da vitória presidencial do democrata Joe Biden. A capital americana foi colocada sob toque de recolher. As imagens da violência chocaram o país e o mundo.
A sessão conjunta da Câmara e do Senado foi encerrada por volta das 14h, depois que manifestantes invadiram o Capitólio, quebrando janelas e ameaçando funcionários e a segurança. Congressistas e o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, foram evacuados. O deputado democrata Dean Phillips gritou para os republicanos: “Isso é por causa de vocês!”.
Os apoiadores de Trump podiam ser vistos caminhando pelos corredores ao lado de portas fechadas, carregando bandeiras e gritando obscenidades. Eles invadiram gabinetes, inclusive o da presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi.

Houve disparos de armas de fogo dentro do prédio do Congresso e uma mulher, aparentemente uma manifestante, foi baleada e acabou morrendo no hospital. Não estava claro na noite de ontem se havia mais feridos.

Horas depois que a violência irrompeu, pressionado por congressistas dos dois partidos, Trump conclamou seus apoiadores a irem para casa, enquanto os chamava de “muito especiais” em vídeo divulgado no Twitter. “Essa eleição foi fraudulenta, mas não podemos 
jogar o jogo dessas pessoas. Precisamos de paz”, disse o presidente. Ele pediu que os manifestantes respeitassem a polícia, mas não disse nada sobre respeitar os congressistas.
Ontem à noite, o Twitter suspendeu a conta de Trump por 12 horas, por incitar a violência.

Durante a invasão, Trump foi fortemente criticado por congressistas de seu partido. Em entrevista por telefone à CNN, um deputado chegou a acusar o presidente de covardia, por demorar a pedir que os manifestantes se retirassem e por se recusar a aceitar o resultado eleitoral.

O presidente eleito, Joe Biden, denunciou energicamente a invasão do Congresso, classificando-a de um ataque sem precedentes à democracia dos EUA que “beira a sedição”. “Não há nada de patriótico no que está ocorrendo no Congresso.”

O senador republicano Marco Rubio postou no Twitter: “Isso é uma anarquia antiamericana ao estilo do Terceiro Mundo”.

O caos sem precedentes aconteceu no dia em que aliados republicanos de Trump tentavam contestar os resultados da eleição em vários Estados americanos. Isso foi parte de uma pressão de última hora - fracassada - para tentar manter Trump no cargo após dois meses de esforços para convencer autoridades e tribunais estaduais a reverterem sua derrota nas urnas.

Os aliados de Trump estavam recorrendo ao Congresso para tentar anular votos em vários Estados, durante a sessão conjunta do Congresso. O esforço para reverter o resultado eleitoral expôs um racha no Partido Republicano e uma forte intensa polarização no país.
“Jamais desistiremos, jamais cederemos”, disse Trump a apoiadores reunidos no parque Ellipse perto da Casa Branca, no meio da tarde de ontem, antes da invasão do Congresso, enquanto ele pedia ao vice-presidente Mike Pence e aos republicanos que trabalhassem para reverter o resultado da eleição e encorajava os manifestantes a marcharem para o Congresso. “Não dá para ceder quando há roubo envolvido.”

Antes disso, Pence já havia dito que não tinha autoridade para derrubar a vontade dos eleitores, rejeitando a pressão de Trump. “A Presidência pertence ao povo americano, e apenas a ele”, escreveu Pence. “É minha conclusão que meu juramento de sustentar e defender a Constituição me impede de reivindicar autoridade unilateral para determinar quais votos do Colégio Eleitoral devem ser contados e quais não devem.”
Antes que o debate no Senado fosse interrompido, o líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell, repreendeu fortemente o presidente e disse que “se esta eleição fosse derrubada por meras alegações do lado perdedor, nossa democracia entraria em uma espiral mortal”.

As autoridades municipais sabiam que havia risco de violência, em uma repetição dos distúrbios de encontros anteriores a favor de Trump, mas aparentemente não esperavam algo tão dramático como a invasão do prédio do Congresso. Enquanto o debate se desenrolava nos plenários da Câmara e do Senado, uma multidão invadiu o Cannon House Office Building, edifício que abriga os escritórios da Câmara, o que levou a polícia a ord
enar uma evacuação.

“Para aqueles que invadiram o Congresso - estou no plenário da Câmara e não serei impedido de manter meu juramento à Constituição, sob os olhos de Deus, por exigência da turba”, tuitou o deputado republicano Chip Roy.

Os 50 Estados e o Distrito de Columbia validaram seus resultados eleitorais em dezembro. Normalmente, o processo de homologação dos votos do Colégio Eleitoral no Congresso, duas semanas antes da posse, é pouco mais que uma cerimônia de rotina, que dura menos de meia hora. Mas ontem a expectativa era de que dezenas de republicanos na Câmara e 13 no Senado contestassem a validação dos votos de ao menos três Estados: Arizona, Geórgia e Pensilvânia.

Mas era esperado que as contestações não seriam aceitas nem na Câmara, controlada pelos democratas, nem no Senado, ainda com maioria republicana. Agora, após os protestos, é i provável que a contestação do resultado continue.

Ontem à noite, a presidente da Câmara, Pelosi, disse que os congressistas retomariam a homologação do resultado eleitoral, assim que o prédio Congresso fosse liberado. Ela disse que a decisão foi tomada após consultas com outros líderes do Congresso e ligações para o Pentágono, Departamento de Justiça e o vice-presidente Mike Pence.
“Sempre soubemos que essa responsabilidade nos levaria noite adentro. A noite ainda pode ser longa, mas temos esperança de uma agenda mais curta, mas nosso propósito será alcançado”, disse Pelosi em um comunicado

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Entidade empresarial pede o afastamento de Trump

07/01/2021

 

 

O presidente de uma das maiores entidades empresariais americana, a National Association of Manufacturers, pediu ontem o afastamento do presidente Donald Trump, após os incidentes em Washington. O pedido marca uma aceleração no processo de distanciamento do meio empresarial do setor mais radical do Partido Republicano
Uma das maiores entidades empresariais americana pediu ontem o afastamento do presidente dos EUA, Donald Trump, após os incidentes em Washington. As principais lideranças empresariais americanas já vinham criticando Trump e o Partido Republicano pelo esforço para reverter o resultado das eleições presidenciais.

Jay Timmons, presidente da National Association of Manufacturers (NAF), entidade que representa 14 mil empresas nos EUA, incluindo Exxon Mobil, Pfizer e Toyota, pediu que as autoridades americanas avaliem a possibilidade de afastar Trump do cargo, depois que manifestantes invadiram o prédio do Congresso dos EUA.
Timmons disse que Trump “incitou a violência, numa tentativa de se manter no poder, e qualquer autoridade eleita que o defenda estará violando o seu juramento perante a Constituição e rejeitando a democracia a favor da anarquia”.

“O vice-presidente [Mike] Pence, que foi evacuado do Congresso, deveria considerar seriamente trabalhar com o Gabinete para invocar a 25° emenda para preservar a democracia”, completou.

Trump tem mais duas semanas de mandato até a posse do presidente eleito, o democrata Joe Biden, em 20 de janeiro.

Outras entidades empresariais, como a Business Roundtable, divulgaram notas criticando a invasão do prédio do Congresso e também responsabilizaram Trump pelos incidentes, mas não chegaram a pedir o seu afastamento.

Antes mesmo dos eventos de ontem, republicanos que apoiam os esforços de Trump de derrubar o resultado da eleição estavam em rota de colisão com os dirigentes empresariais dos EUA. Empresas americanas estão reconsiderando seu apoio e financiamento a políticos que julgam ser uma ameaça à estabilidade nacional.

A decisão de 13 senadores republicanos de se integrar a parte da bancada do partido na Câmara na iniciativa de se recusar a homologar a vitória de Joe Biden ontem foi rapidamente condenada por grupos empresariais, cujos dirigentes expressaram temor diante da ameaça que a medida representa para uma democracia considerada incontestável pela maioria.
Essa iniciativa “mina nossa democracia e o Estado de Direito”, advertiu a Câmara de Comércio dos EUA, enquanto que uma coalizão de pequenas empresas censurava duramente a “vergonhosa cumplicidade” da tentativa de autoridades eleitas de ajudar Trump a “solapar a vontade dos eleitores”.

Iniciativas que visam frustrar a transferência ordenada de poder a Biden “agridem os princípios essenciais da nossa democracia”, acrescentaram mais de 180 executivos de Nova York, como Julie Sweet, da consultoria Accenture, Larry Fink, da gestora de investimentos BlackRock, e Henry Kravis, da empresa de private equity KKR.

Explicitamente várias das declarações argumentavam que ceder a teorias de conspiração sem fundamento - entre as quais a de que Biden só ganhou graças à maciça fraude eleitoral - é ruim para a atividade econômica em uma época em que os executivos querem que o governo americano administre os efeitos econômicos da covid-19.

Semear mais desconfiança no sistema político “ameaça a recuperação da economia... que o nosso país necessita tão desesperadamente”, disse a Business Roundtable, a associação sem fins lucrativos formada pelos presidentes das maiores empresas americanas e liderada por Doug McMillon, executivo-chefe da Walmart.

Richard Edelman, diretor do grupo de relações públicas que leva o seu nome, disse: “Os executivos-chefes estão com medo. Não gostam da ideia de os EUA serem uma república das bananas”.

Uma análise do “Financial Times” detectou que os 13 senadores que apoiam o último e desesperado esforço de Trump de se manter no poder foram financiados por alguns dos maiores nomes do establishment corporativo americano. Juntos, eles receberam quase US$ 2 milhões de empresas como a Koch Industries, de petróleo e derivados, do fundo Berkshire Hathaway, da companhia de logística UPS e da telecom AT&T no ciclo eleitoral de 2019-2020.

Jeffrey Sonnenfeld, professor da Faculdade de Administração de Yale, que participou de uma teleconferência de 33 altos executivos anteontem para discutir como o empresariado poderia reagir, disse haver “indignação universal” no num grupo que normalmente abarca todo o espectro político.
Na pesquisa simulada feita durante a teleconferência, 88% disseram que autoridades que apoiam a posição de Trump são “cúmplices de uma rebelião”; pouco mais de 50% disseram que estudarão a possibilidade de cortar seus investimentos nos Estados representados pelos senadores; e 100% disseram que as empresas deveriam alertar os profissionais de “lobby” de que deixarão de financiar políticos que renegam os resultados eleitorais.

“Esses dirigentes empresariais com toda a certeza não vão investir na periferia desagregadora”, disse o professor Sonenfeld ao “FT”.

Senadores que deveriam saber do caráter equivocado da iniciativa estariam “brincando com o fogo”, acrescentou Tom Glocer, diretor do Morgan Stanley e ex-executivo-chefe da Thomson Reuters. “Para que as pessoas pensem duas vezes antes de embarcar nesse oportunismo político, temos de abalar a única coisa que tem importância para elas” - as contribuições de campanha.

No entanto, alguns lobistas de Washington alertaram para o fato de que não preveem um afastamento de peso das doações corporativas a parlamentares republicanos que abraçaram o desacato de Trump a uma transição ordenada.

Eles destacaram que o respaldo empresarial se fundamenta em outras questões importantes para as empresas. Acrescentaram que os polêmicos senadores que apoiam o esforço de Trump podem ser preferíveis a potenciais rivais vindos ainda mais da direita.

Mesmo assim, as empresas poderão enfrentar pressões externas referentes a seu apoio financeiro a políticos que estão promovendo denúncias de fraude eleitoral rejeitadas por uma série de tribunais e autoridades estaduais.

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Líderes globais condenam invasão em Washington

 

07/01/2021

 

 

Autoridades dizem que ação de defensores de Trump no Congresso americano é ataque à democracia
Autoridades em todo o mundo reagiram à invasão do Congresso dos EUA, denunciando o que consideraram um ataque à democracia. A invasão ocorreu durante a sessão que certificaria Joe Biden como presidente eleito do país.

O premiê do Reino Unido, Boris Johnson, chamou de “cenas vergonhosas” o ocorrido em Washington. “Os EUA são os defensores da democracia em todo o mundo e agora é vital que a transferência de poder seja feita de forma pacífica”, afirmou Johnson no Twitter.
O ministro alemão das Relações Exteriores, Heiko Maas, pediu que os defensores do presidente americano “parem de pisotear a democracia” e apelou para que Trump e seus apoiadores aceitem a decisão das urnas.

O secretário-geral da Otan (aliança militar ocidental), Jens Stoltenberg, afirmou que a invasão mostrou “cenas chocantes”. Pelo Twitter, disse que “o resultado dessa eleição democrática deve ser respeitado”.

O presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, lamentou as “cenas profundamente perturbadoras”. Em um tuíte, disse que os votos dos cidadãos devem ser respeitados. “Confiamos que os Estados Unidos garantirão a proteção das regras da democracia”.
Josep Borrell, principal diplomata da União Europeia, disse que “aos olhos do mundo, a democracia americana parece estar sob assédio.” No Twitter, afirmou: “Não é o que conhecemos dos EUA”.

Já o comissário da União Europeia para a Economia, Paolo Gentiloni, chamou as cenas de “vergonha”. Um dos grupos empresariais mais influentes dos EUA, o Business Roundtable, chamou os protestos de “esforços ilegais”. “O caos que se desenrola na capital do país é o resultado de esforços ilegais para derrubar os resultados legítimos de uma eleição democrática. O país merece melhor”, afirmou, em comunicado.

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‘EUA têm comportamento de país emergente’, diz Gave

Maria Luíza Filgueiras

07/01/2021

 

 

Fosse num país latino-americano ou nos emergentes asiáticos, talvez as imagens não causassem tanto estranhamento, diz Louis-Vincent Gave, presidente e cofundador da Gavekal Research
A invasão de apoiadores do presidente americano Donald Trump ao Congresso ontem fez muita gente no Brasil arrepiar os cabelos - dado o fetiche do governo nacional com tudo que acontece na terra do Tio Sam, as cenas inimagináveis de manifestantes tomando conta no palco da maior democracia do mundo soaram como trailer de um filme de terror tupiniquim.

Fosse num país latino-americano ou nos emergentes asiáticos, talvez as imagens não causassem tanto estranhamento. Pois para Louis-Vincent Gave, presidente e cofundador da Gavekal Research, considerado no mercado internacional “the master of big picture" (mestre dos cenários), não deve ter soado tão absurdo.
Há seis dias, Gave disse em entrevista à revista suíça “The Market” que “os EUA começam a parecer agir como um mercado emergente doente”, citando que ao menos 30% da população acredita que a eleição foi manipulada. “É alucinante.”

As cartas que Gave escreve sobre geopolítica e macroeconomia, a partir de Hong Kong, direcionam muitos gestores internacionais na projeção de impactos financeiros. Não é só a descrença com a ferramenta principal de uma democracia - o processo eleitoral - que leva Gave a esse comparativo com emergentes. Há um ano, os rendimentos do Tesouro americano estavam caindo, assim como o preço do petróleo, enquanto o dólar subia. Hoje, os yields estão subindo e o dólar, caindo. “É o que acontece em mercados emergentes em declínio. Se você vê o mesmo na Indonésia, é sinal de que os investidores estão saindo porque não concordam com as políticas de lá”.

Ele ressalta que o caminho de explosão fiscal seguido pelos Estados Unidos, pela política adotada e pelo próprio contexto de pandemia, “foi enviar dinheiro para as pessoas ficarem em casa vendo TV” e não investimento produtivo - o que deve colocar o Fed num dilema rapidamente. “O Fed terá que decidir se deixa o yield subir ou não. Se deixar normalizar até os níveis pré-covid, o papel de 10 anos tem que subir cerca de 2,5%. Mas se fizerem isso, o funding do governo fica problemático”, diz.

Uma alta de 50 pontos base na taxa de juros é equivalente ao orçamento anual da Marinha americana, compara, para um país que já está tomando dinheiro para pagar juros - por isso, ele aposta que o Fed vai conter essa subida dos yields até 2%, o que pode causar um impacto de 20% no dólar.