Valor econômico, v. 21, n. 5163, 08/01/2021. Brasil, p. A2

 

Brasil supera 200 mil mortos por covid, em quadro de descontrole da doença

Leila Souza Lima

Marcos de Moura e Souza

Hugo Passarelli

08/01/2021

 

 

O motivo para o resultado se deve especialmente à falta de coordenação por parte do governo federal na resposta à doença e ao negacionismo do presidente Jair Bolsonaro
O Brasil superou o número de 200 mil mortos pela covid-19, num cenário de forte aumento da curva de casos e óbitos da doença nas últimas semanas. O total de mortes só fica atrás dos mais de 360 mil registrados nos EUA, evidenciando o fracasso do país no combate à pandemia, segundo especialistas. O motivo para esse resultado, apontam, se deve especialmente à falta de coordenação por parte do governo federal na resposta à doença e ao negacionismo do presidente Jair Bolsonaro da gravidade da crise sanitária. Ontem, foram 1.120 mortos, de acordo com o consórcio de veículos de imprensa. Pelos números do Ministério da Saúde, foram 1.524.

“Vale pontuar que esse número é alto, mas é subestimado. Temos problemas com subnotificação e muitas mortes por síndrome respiratória não foram computadas. O segundo aspecto é que são óbitos evitáveis, por resultarem de uma doença transmissível. Então resta dizer que país falhou nas medidas de contenção do vírus, quando tinha tudo para ser exemplo internacional nessa empreitada”, afirmou Alberto Massuda, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV de São Paulo).
Para o pesquisador em saúde pública Marcelo Gomes, coordenador do InfoGripe, da Fundação Oswaldo Cruz, o Brasil poderia ter evitado muitas dessas 200 mil mortes, uma marca que reforça a percepção de que o país está entre os que fracassaram em lidar com a pandemia. “Poderíamos ter tido ações para que agora tivéssemos número menor de mortes.”
A posição adotada pelo presidente Jair Bolsonaro em relação ao vírus, assim como posturas de alguns prefeitos e governadores, ressaltou Gomes, contribuiu para que parte da população tenha relevado os cuidados sanitários e preventivos que continuam a ser necessários nesse enfrentamento.

“Todo esse negacionismo é responsável por essa marca. E o pior é que o negacionismo continua neste momento de segunda onda”, afirmou Domingo Alves, professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. “Se esse comportamento continuar, vamos levar quanto tempo para chegar aos 300 mil mortos?”, questionou.

Para Marcelo Gomes, as 200 mil mortes e o comportamento descolado da ciência que prospera entre setores da sociedade posicionam o Brasil como um dos que falharam na gestão da crise. EUA, Índia e Suécia fazem parte dessa lista, na visão do pesquisador.

Nos cálculos do pesquisador, essa soma de mortes não leva em conta ao menos 76 mil óbitos. “Além desses 200 mil, pode haver mais 76 mil mortes atribuídas à síndrome respiratória aguda (SRAG) que ainda aguardam o resultado do teste de covid ou que podem ter tido resultados falsos negativos”, disse ele, com base nos levantamentos do InfoGripe. Até o início da semana, o país havia registrado 263 mil mortes por SRAG.

Massuda lembrou que o país foi bem no combate a epidemias como zika vírus e deixou de usar estrutura e profissionais preparados na área de vigilância epidemiológica no enfrentamento ao Sars-Cov2. “Há um conjunto de medidas para evitar essas mortes, e nós teríamos todas as condições de nos tornarmos referência internacional nessa resposta. Tínhamos rede de informação e vigilância em saúde dentro de um conjunto de ações que foi usado em epidemias anteriores”, afirmou ele. “Era preciso investir, por exemplo, em testes. Efetivamente não fizemos esse monitoramento epidemiológico”, resumiu Massuda, ao observar que a rede nacional de laboratórios públicos foi subutilizada.
Segundo ele, as principais falhas ocorreram em áreas que tinham grande potencial de resposta, e basicamente o país atuou apenas para aumentar a capacidade hospitalar. “Gastamos muito e gastamos mal”, afirmou o médico sanitarista.

Consultor técnico da Sociedade Brasileira de Infectologia, Hélio Bacha avalia que houve “certo incentivo”, vindo das autoridades, para a exposição em aglomerações - cenário que resultou de uma campanha de “descrença no que funciona, como isolamento social, e uma campanha para fazer com que as pessoas confiem em medicamentos sem eficácia comprovada. Tivemos um desserviço ao prescrever medicações inadequadas”, afirmou.

Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro tem defendido o uso da hidroxicloroquina para o tratamento da doença, alegando inclusive que o fármaco não gera efeito colateral. A eficácia do medicamento contra a covid não tem comprovação científica.

O mais preocupante no momento é que a disseminação da doença está em ritmo acelerado, disse Bacha. “No pico do primeiro semestre do ano passado, as pessoas ainda tinham alguma expectativa de manter o isolamento social e mesmo assim chegamos à marca de 100 mil mortos [em agosto de 2020]. Agora, chegamos a 200 mil e numa condição de crescimento geométrico, nas últimas semanas tivemos um crescimento que não se esperava.”

Ao longo do ano, em várias oportunidades, Bolsonaro minimizou a gravidade da doença e contribuiu para a disseminação de informações equivocadas a respeito da covid-19. Em 20 de março, o presidente afirmou que não “seria uma gripezinha que iria derrubá-lo”, ao ser questionado por jornalistas sobre o seu estado de saúde.

Em 27 de novembro, o presidente disse que o uso da máscara no combate à covid-19 é “pouco eficaz”, contrariando as evidências científicas sobre a importância da utilização para reduzir a propagação da doença. Em 10 de dezembro, Bolsonaro disse que o Brasil vivia o “finalzinho de pandemia”, em pleno período de aumento do número de casos, que continua em curso.
Segundo Bacha, o momento inspira mais cautela sobre a capacidade do sistema de saúde. “Temos hospitais e UTIs lotados, no limite do perigoso para que se quebrem as condições de cuidado dos pacientes. A ameaça agora é maior.” Contribui para esse movimento, prosseguiu, certo cansaço da população jovem em se manter em casa, somado com reiterados incentivos equivocados das autoridades. “Os jovens estão saindo mais e acabam passando para seus familiares. Os idosos estão contraindo no próprio ambiente doméstico”, afirmou.

Segundo Adriano Massuda, as novas cepas do vírus podem ser menos letais, mas são mais transmissíveis, e certamente mais gente vai se contaminar e morrer. “O fato de haver uma vacina é boa notícia, mas a vacinação não vai avançar de um dia para o ouro. Não é à toa que europeus estão adotando medidas duras como lockdown.”

Ontem, o Brasil registrou 1.120 mortes pela covid-19 nas 24 horas até 20h, elevando o total de óbitos para 200.163, segundo o consórcio de veículos de imprensa. Foram registrados 56.404 novos casos, chegando ao total de 7.930.943 de infectados no país.

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Em nota, ministério lamenta e fala em “unir forças”

 

Fabio Murakawa

08/01/2021

 

 

Texto diz falar em nome também do presidente da República
O Ministério da Saúde emitiu nota ontem expressando solidariedade com as famílias das vítimas fatais do coronavírus, no dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 200 mil mortos pela covid-19.

Na nota, o ministério afirma que o momento é de unir forças, “para que todos os dias possamos trabalhar empenhados na solução dessa pandemia”.
“Nesta quinta-feira, 7 de janeiro, infelizmente o Brasil chegou ao triste número de 200 mil vidas perdidas - brasileiras e brasileiros que tiveram os sonhos e projetos interrompidos pelo coronavírus”. diz o texto. “Em nome do presidente da República, Jair Bolsonaro, do Ministério da Saúde e de todo o governo federal, queremos nos solidarizar com cada família que perdeu entes queridos”, prossegue. “Para nós, servidores do Ministério da Saúde, não é um momento só de pesar. É também momento de reflexão e de unir forças, para que todos os dias possamos trabalhar empenhados na solução dessa pandemia.”

Mais cedo, em entrevista coletiva, o secretário-executivo da pasta, Elcio Franco, também se referiu ao assunto.

“O nosso agradecimento a todos os profissionais de saúde e o nosso pesar, a nossa dor dividida, não com o número de 200 mil óbitos, mas com 200 mil pessoas, entes queridos que nos deixaram nesse momento da pandemia”, afirmou. “O nosso pesar, nosso sentimento e o nosso esforço e empenho diuturno para ajudarmos a mitigar esse risco pelo tratamento médico, pela assistência integral e pela imunização.”